A imagem que vale mais que mil palavras

(Paulo Argollo)

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O que leva alguém a arriscar a própria vida? Princípios, crenças, posicionamento político… essas coisas valem mais que uma vida? Uma questão complicada, né? Porque muitas vezes um princípio, uma crença, um posicionamento político representa o bem de muitas pessoas, de todo um país. Até dá pra dizer que seria o cúmulo do altruísmo dar a vida por uma causa.

Pois o dia 5 de junho de 1989 representa exatamente esse tipo de atitude. Mesmo que os fatos que envolvem este evento sejam ainda hoje muito nebulosos e não se possa ter certeza de nada, dá para, pelo menos, se inspirar com este episódio que ficou marcado na história.

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Nos dias 3 e 4 de junho de 1989, a capital da China, que vivia uma ferrenha ditadura, foi palco de um massacre. Milhares de pessoas, estudantes em sua maioria, protestavam em uma manifestação pacífica no centro de Pequim quando o exército interveio. O evento ficou conhecido como o Massacre da Praça da Paz Celestial.

Os números do massacre nunca foram revelados pelo governo Chinês, mas estima-se que entre 400 e 1.200 pessoas foram mortas, além de milhares feridas, durante a intervenção militar que durou dois dias e conteve o protesto.

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Os manifestantes protestavam contra a ditadura que oprimia e censurava a imprensa e manifestações culturais, limitava a liberdade dos cidadãos e tornava a desigualdade social alarmante, com muita gente passando fome. Em resumo, as pessoas clamavam por democracia. Só pra deixar claro, democracia é o oposto de intervenção militar, tá bom?

Pois bem. O protesto foi totalmente contido no dia 4 de junho ao anoitecer. No dia seguinte, dia 5 de junho, o exército começou a se retirar do local. Uma fileira com pouco mais de uma dezena de canhões de guerra passava por uma das avenidas que margeava a Praça da Paz Celestial quando um homem com duas sacolas de supermercado, uma em cada mão, vestindo uma calça preta e uma camisa branca, atravessava a avenida. Quando viu os tanques, ele parou no meio da via e se colocou bem na frente do primeiro tanque da fila. Por quase 20 segundos o tempo parece ter parado: o homem de frente para o tanque e o tanque parado de frente para o homem. Passados os aproximadamente 20 segundos, o tanque faz uma manobra para a direita para desviar do homem, que rapidamente dá alguns passos para o lado e se coloca na frente do tanque mais uma vez. Por sua vez, o tanque desligou o motor e ficaram ali, homem e tanque, de frente um para o outro. Logo a cena começou a chamar a atenção.

Parece que a ação demorou, mas foi coisa de poucos minutos. A sorte é que, em um hotel que ficava de frente para a tal avenida, algumas pessoas viram tudo acontecer, se deram conta da importância daquilo e registraram.

Os fotógrafos Stuart Franklin e Charlie Cole estavam no quinto andar do hotel e se apressaram em fotografar a cena. Eles sabiam que seria quase impossível sair da China com aquelas fotos. Franklin correu pelo hotel e encontrou um estudante francês que estava prestes a voltar para a casa. Ele fez com o que o rapaz escondesse o rolo de filmes numa caixa de chá e o instruiu a enviar o filme para seu jornal na Inglaterra. Já o norte americano Charlie Cole substituiu o rolo com a foto da avenida em sua câmera por um outro rolo sem fotos, e escondeu o rolo com a foto na caixa acoplada do vaso sanitário do banheiro de seu quarto de hotel.

Depois de todo o ocorrido nos últimos dias, os militares chineses estavam vasculhando os quartos de todos os jornalistas estrangeiros para evitar ao máximo que aquele massacre fosse noticiado mundo afora. Por sorte, Cole conseguiu que seu filme não fosse encontrado e sua foto foi publicada dias depois na revista Newsweek.

Outro fotógrafo que estava no hotel era Jeff Widener, também norte-americano. Ele trabalhava para a Associated Press na época e estava num quarto a poucos andares acima de Franklin e Cole. Ele estava doente naquele dia, havia sido ferido no dia anterior, quando estava fotografando o confronto dos manifestantes com o exército, além de estar gripado. Mas também viu a cena do rapaz na frente do tanque e fotografou. Sua foto é a mais famosa e mais difundida deste acontecimento.

A cena ficou conhecida mundo afora como O Rebelde Desconhecido. Isso porque, após os poucos minutos que ficou na frente dos tanques, impedindo sua passagem, ele foi retirado de lá por duas pessoas que não estavam fardadas, importante dizer. Os três saíram do meio da rua caminhando, o rapaz desconhecido no meio e os outros dois segurando seus braços, um de cada lado, chegaram até a calçada e se misturaram no meio da multidão e desapareceram. Até hoje a identidade do rapaz com as sacolinhas de supermercado na mãos é desconhecida. Teorias existem aos montes: que ele está vivo e também que ele foi morto, o que é o mais provável. A teoria mais convincente diz que os dois rapazes que o acompanharam para longe dos canhões eram agentes do governo e que o rapaz foi preso e executado. O governo chinês nega até hoje, mas é o que acontecia com muita gente. Aliás, é o que acontecia com muita gente na maioria das ditaduras mundo afora. Se você duvida, é só perguntar pro jornalista Marcelo Rubens Paiva o que os militares brasileiros diziam sobre o paradeiro do pai dele.

No último fim de semana presenciamos uma manifestação incrível Brasil afora, protestando contra o descaso e irresponsabilidade do governo federal frente ao número assustador e crescente de mortos no país pela covid-19. Uma manifestação legítima e responsável na maior parte das cidades, dada a situação. Por isso faço questão de resgatar a lembrança deste impactante 5 de junho de 1989. Para honrar a muito provável morte de um homem que, literalmente, enfrentou quem tirava o direito dele e de todo o seu país de viver livre e decentemente. Que este ideal e coragem de lutar nos inspire para que a gente não precise repetir cenas que já vivemos aqui mesmo, de militares massacrando, prendendo e executando estudantes. Nos inspire a lutar para ter no poder um governo verdadeiramente democrático e responsável, que valorize a vida.

HOJE EU RECOMENDO
Filme: Os 7 de Chicago
Direção: Aaron Sorkin
Ano de lançamento: 2020
Filme excelente sobre o julgamento de 7 pacifistas que teriam organizado uma manifestação contra a guerra do Vietnã que acabou em confronto com a polícia. Baseado em fatos reais e um filmaço imperdível.

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