Documentário ‘Edna’ se inspira na luta pela terra

Cinco anos depois de conquistar a Palma de Ouro da não ficção em Cannes (o troféu L’Oeil d’Or) com Cinema Novo, Eryk Rocha tem um novo filme para estrear nesta sexta-feira (16) em duas vitrines documentais: o É Tudo Verdade, no Brasil, e o Visions du Réel, na França: Edna. Ambos os eventos vão passar o fim de semana exibindo a potente fotografia em P&B e os versos da canção Máquinas Humanas, com a entonação ‘breganeja’ de Paulo Sérgio.

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“Edna traz, em suas marcas, experiências que se entrelaçam com a tragédia histórica do Brasil e que, tão cruelmente, têm a ver com o nosso presente. Um presente de feridas abertas e questões cruciais que ainda não fomos capazes de resolver como povo”, explica o cineasta de 43 anos ao Estadão, contabilizando ainda outras duas conquistas: a ida de Cinema Novo para a Netflix, nas próximas semanas, e a ida de sua recente ficção Breve Miragem de Sol (2019) para a Amazon Prime em países da Europa, da África e da Oceania. “Apesar das diferenças, os personagens de ‘Miragem de Sol’ e de ‘Edna’ compartilham a solidão dentro de um território destruído”.

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Revelado mundialmente com Rocha Que Voa (2002), sobre as vivências cubanas do diretor baiano Glauber Rocha (1939-1981), seu pai, Eryk tem no currículo um rol de protagonistas masculinos, como os craques juvenis de Campo de Jogo (2014), e o cantor Jards Macalé, de “Jards”, pelo qual ele conquistou o troféu Redentor de melhor direção no Festival do Rio, em 2012. Agora é a vez dar o protagonismo a uma mulher, cujas andanças pelo País vão cruzar com episódios históricos de violência institucional. Seu foco aqui é Edna, nome (ou seria um pseudônimo?) usado por uma camponesa nascida no Maranhão que viveu a Guerrilha do Araguaia (1967-1974) e a Guerra dos Perdidos (1976). Diários escritos por ela desenham uma cartografia de afetos com ecos existenciais inéditos nas abordagens do cineasta.

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“Eu fui criado por uma mulher (a diretora Paula Gaitán), com duas irmãs. Então, a energia feminina sempre fez parte de uma forma muito visceral na minha vida. Creio que o feminino, além de ser um gênero, é uma força cósmica. Tem muito a ver com sensibilidade, com novas formas de sentir o mundo. E isso, para mim, é o cinema”, comenta Eryk. “Lembro quando Edna nos mostrou alguns dos seus cadernos intitulados ‘Histórias de minha vida’, com seus escritos. Quase sussurrando, ela nos disse: ‘Os cadernos são minha forma de desabafar… Num lugar onde não tenho a quem contar tudo que vi e vivi’. Nessas páginas, Edna trazia seus poemas, numa mistura de memórias pessoais e memória política do País. A melodia da sua voz e seu pensamento projetavam uma coexistência de tempos, entrecruzando memória vivida, desejo e fabulação. Então creio que o feminino é um rio, um oceano. Tem a ver com fluxo, com o indizível, com um saber que também agrega intuição”.

Escalado para a competição Burning Lights do Visions du Réel, Eryk atribui a forma de sua mais recente pesquisa sobre a gramática do documentário à memória de Edna em sua relação solitária com o tempo e o espaço. “A arte pode ser a aventura de experimentar a imaginação do outro. Por exemplo, quando Edna diz: ‘Sonho sair daqui para um lugar não sei aonde…’. Esse verso foi uma guia para pensarmos as nuances da montagem e a partitura do filme.”

Mais do que uma investigação sobre as recordações que Edna guardou do Araguaia e dos enfrentamentos contra o regime militar, o longa de Eryk é um estudo de território, usando uma estrada como uma metonímia de Brasil. “Na Rodovia Belém-Brasília (ou Transbrasiliana), vemos diariamente dezenas de caminhões passarem transportando madeira e tudo aquilo que é possível de ser extraído da terra e da floresta. A Transbrasiliana, a exemplo de tantas outras estradas do norte do País, foram abertas durante a ditadura militar, que rasgou e violou a floresta amazônica, com milhares de quilômetros de estradas, matando milhares de indígenas por doenças, destruindo suas terras, abrindo caminho para o desmatamento. Esse era o chamado ‘projeto de desenvolvimento’ no início dos anos 70. No caso da Transbrasiliana, ela está situada no sul do Pará, uma das regiões mais violentas do País. É uma região de muitos conflitos, massacres e disputas de terra. É como se o Brasil coubesse dentro desse território. Então existia durante as filmagens um clima muitas vezes de alta tensão, de risco. Acredito que isso está presente na própria atmosfera do filme”, explica o diretor.

Resiliente, Edna entrou no caminho de Eryk em 2015, durante a pesquisa de Guerrilheiras, ou para terra não há desaparecidos, peça teatral idealizada pela atriz Gabriela Carneiro da Cunha e dirigida por Georgette Fadel. “Uma das camadas da peça eram os testemunhos das mulheres camponesas que ficaram próximas das guerrilheiras no Araguaia. Edna era uma delas”, conta o diretor.

“Nesse projeto, me cabiam as invenções audiovisuais que iriam compor a peça. Desde o início, ficamos muito impressionados pela presença, pela voz e pela força do relato de Edna. Ouvimos ela dizer coisas tão fortes com doçura e, ao mesmo tempo, com dor e sofrimento. Meses antes, Gabriela já havia me contado com muita emoção sobre Edna, e, quando terminou esse encontro, ficamos todos encantados, sonhando um filme com ela. Foi a Gabriela que plantou a semente inaugural desse projeto, além de ter participado como roteirista, pesquisadora e assistente de direção. E podemos dizer que Edna foi a ligação, pois proporcionou esse fértil encontro entre o teatro e o cinema.”

Neste momento, Eryk e Gabriela dizem estar vivendo uma nova aventura, codirigindo o filme A Queda do Céu. “É um projeto inspirado livremente no livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert, que também filmamos na Amazônia, mas, agora, com os Yanomami da comunidade do Watoriki”, diz Eryk. “O filme está atualmente em fase inicial de montagem e traz um novo mundo ali.”

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