O Policarpo é pop

Histórias de um frei apaixonado pela música, que usou a arte para pregar, e virou letra de uma canção de rock

Policarpo Berri é um ícone cultural. Não é preciso sequer pisar na Matriz São Pedro Apóstolo para saber de sua fama entre os pato-branquenses, conquistada ao longo de décadas pelo seu carisma, simplicidade, e pelo folclórico jeito de falar, imitado por muita gente.

É possível respeitar o frei por vários motivos, e um deles é a música. Se a principal igreja de Pato Branco tem um órgão de mil tubos, a culpa é de Policarpo, que toca, canta, compõe, e dizem que muito bem.

Os seminários são conhecidas escolas de música, arte muito relacionada à evangelização no catolicismo. Mas para o quase centenário “polica”, a paixão pela música surgiu bem antes.

Quem o conheceu na infância reverberou a história de que ele gostava de decorar longas letras e cantar para parentes e amigos, que se admiravam com a memória e a afinação do garotinho. O relato foi dado por frei Nelson Rabelo (em memória), outro apreciador de boa música, em entrevista para a jornalista Marilena Chociai.

Também está no saldo da música a amizade entre Nelson e Policarpo. Na mesma entrevista, o falecido frei lembra que a primeira vez que se cruzaram foi por volta de 1962, em Curitiba.

Policarpo procurou Nelson, então estudante de Filosofia e mantenedor de um grupo de frades cantores, para gravar uma composição sua em honra a São Roque, padroeiro dos agricultores. O encontro aconteceu no convento da praça Rui Barbosa.

A intenção de Policarpo era transmitir a música aos colonos de Pato Branco, o que de fato aconteceu. “Lembro que ele foi muito interessado, valorizou o nosso trabalho e trouxe a gravação para Pato Branco, que foi rodada nas emissoras de rádio”, contou Nelson, atestando o talento musical de Policarpo. “Quando eu vim a Pato Branco foi que tive contato mais direto com Policarpo nas emissoras (de rádio). E realmente conferia com aquilo que eu já tinha visto. Um frade muito criativo, interessado em música, e um músico de primeira”.

Ao longo do tempo, outras pessoas puderam testemunhar as habilidades musicais do frei, especialmente no órgão posicionado no mezanino da matriz São Pedro, fabricado em Ludwigsburg, na Alemanha. Talvez este seja um dos maiores símbolos da paixão do religioso pela arte.

O órgão

Crédito: Marilena Chociai Rizzi

A compra do instrumento exigiu um pouco de lábia. Quando Policarpo chegou a Pato Branco, em 1956, praticamente ninguém sabia o que era um órgão, conta o próprio em entrevista à jornalista Marilena Chociai Rizzi.

Mesmo assim, Policarpo convenceu um grupo de comerciantes a levantar dinheiro para comprar um exemplar, que seria dado de presente ao frei Honorato, então pároco, que aniversariava em 6 de setembro. Reuniram o equivalente a 80 mil-réis, muito perto dos 100 mil necessários.

“Na homenagem que fizemos a ele, no pavilhão em frente à prefeitura, eu contei que nós lhe daríamos de presente um órgão de tubos. O vigário não podia negar, porque era um presente, e assim eu consegui a licença para a compra”, conta o astuto Policarpo.

Então se fez a encomenda, por intermédio de um representante em São Paulo. Trazer um órgão da Europa demora, ainda mais naqueles tempos. Certa vez, um caminhoneiro local encontrou o irmão mais jovem de Policarpo, Honorato, no Rio de Janeiro. Honorato tinha um caminhão da marca Alfa Romeo, e a comunidade local ficou sabendo disso por intermédio do caminhoneiro.

Logo se passou a fazer piada que o dinheiro do órgão foi usado para comprar o tal Alfa Romeo. Dois três anos depois, quando chegou, o instrumento foi apelidado de Alfa Romeo. A mesa de tocar era o equivalente à cabine do caminhão, no anedotário criado pelos fiéis.

A novidade foi inaugurada em uma tarde, às 16h, de acordo com a invejável memória do frei. Era uma missa com cânticos embalados pelo órgão, e para a noite estava programado um concerto.

Para a ocasião foram feitos mil ingressos, mas ninguém apareceu, exceto por 12 pessoas, que passaram por acaso na frente do pavilhão e entraram para ver o que se passava. Também houve performance de um coral de União da Vitória.

Soube-se depois que a baixa adesão se deu porque ninguém queria assistir o órgão ser consertado. Houve até quem ficou indignado com a coragem dos padres em cobrar para assistir o serviço. Até aquele momento, conserto significava apenas reparo para a população local.   

Um conserto de fato também rendeu uma boa história. Conta Policarpo que certa vez um frei beneditino fez a manutenção e afinação do órgão, que naquela altura já estava na Matriz São Pedro Apóstolo.

Os mil tubos foram desmontados e emparelhados no chão da igreja. Ao remontar o equipamento deram falta de 16 tubos, que até hoje não se sabe onde foram parar. “Alguém levou”, é o palpite de Policarpo.

As peças foram substituídas por tubos de madeira, fabricados em uma marcenaria de Pato Branco. Eles estão instalados até hoje.

Músicos, alunos

Além de Policarpo, várias outras pessoas já tocaram e ainda tocam o órgão da matriz, acionado principalmente em ocasiões especiais, como casamentos e ordenações. Dona Frida (em memória), outra personagem muito conhecida da cultura local, era uma delas.

O contador Luis Marison diz ter recebido uma missão de Policarpo: a de não deixar o instrumento ser esquecido. Há pelo menos 15 anos Policarpo reitera o pedido, outro sinal da consideração do frade pelo instrumento. 

Marison o conheceu o frei nos anos 1970, tempos em que o ele realizava celebrações nas casas do bairro Industrial, que na época não tinha capela.

Interessado por música e intérprete de violão na liturgia, Marison recebeu do frei dicas e fundamentos sobre teclado e órgão ao longo de sua história junto à comunidade católica, relação que se mantém até hoje.

Segundo Marison, Policarpo é bastante familiarizado com a linguagem musical, em especial a harmonia. “Estando inserido ali foi natural o contato com o Policarpo, sempre aprendendo com ele, que repassava músicas, ensinava. Ficou uma coisa da vida mesmo”, conta.

As aulas sempre foram informais, como uma troca de experiências entre músicos. “Quando nos encontrávamos e estávamos por ali, sentávamos e ele passava outras músicas, mostrava coisas, sempre com uma pureza. Ver ele tocando me encantava”, completa Marison.

Neri Bocchese, professora e pesquisadora, também foi aluna de música de frei Policarpo. “Ele dava aula no Agostinho Pereira, no colégio das Irmãs [Nossa Senhora das Graças]. Então ele foi um educador, através da rádio, da música. Quantas aulas de música ele deu”, disse ela, em entrevista a Marilena Chociai.

“E seu 44”

Acervo família Matielo

Policarpo Berri não só fez música como virou música. Em 1998, a banda de rock Eu e Mais Dois registrou em seu álbum de estreia, Bizurado, a faixa “Policarpo”, um resumo de algumas das várias lendas por trás da vida do frei.

A principal envolve uma chuteira que Policarpo teria ganhado de um jogador do Pato Branco Futebol Clube. O padre teria usado o presente apesar de ser 44, muito maior do que o seu número. A letra também explica o motivo pelo qual Policarpo não dirige. Diziam na cidade que certa vez ele dormiu ao volante de seu folclórico jeep e foi parar no meio de um banhado. Depois disso, nunca mais dirigiu.

“É o que dizem. Se é verdade? não sabemos”, explica Tayrone Matiello, membro fundador da banda e autor da bem humorada letra, ao lado de Luiz Cesar Gurski, seu sócio.  Muitas dessas histórias ele ouviu de seu pai, o radialista Inelci Matiello.

Tayrone conta que a ideia da música surgiu no aeroporto Juvenal Cardoso. Na época, ele e Luiz vendiam um sistema de telemarketing para políticos, e aguardavam a chegada de Alvaro Dias que estaria de passagem por Pato Branco. A intenção era oferecer o produto. Enquanto esperavam, Luiz pensou em escrever uma música sobre Policarpo, a partir da anedota da chuteira. E assim foi.

A Eu e Mais Dois era formada na época por Tayrone na guitarra, Beto de Bortoli, no baixo e voz, e Rodrigo Crespo na bateria. Luiz era letrista e eventualmente contribuía com a gaita de boca. Desde sempre a banda preferiu tocar músicas próprias, e vários temas e personagens locais serviram de inspiração, sempre sobre a ótica da descontração.

Além do frei, Dona Frida também virou assunto para a banda, que compôs ainda “A revolta dos Cuziona – Parte II”, título que faz paralelo com a revolta dos posseiros. Todas estas registradas em Bizurado, disco gravado em Pato Branco. Em 2002, a banda lançou seu segundo disco, “O melhor pra nós dois”, já com outra formação.

“Policarpo” tocou nas rádios de Pato Branco e foi bem recebida pelo público. Luiz lembra que a banda tocou a música ao vivo na rádio, no dia do aniversário do frei, que ficou sabendo da canção em sua homenagem. Se ele gostou ou não é um mistério, contam os compositores.

Policarpo

(Tayrone Matielo/ Luiz Cesar Gurski)

(Refrão)

Policarpo, Policarpo

Policarpo e seu 44

Policarpo, policarpo

Policarpo e seu 44

Acordou feliz porque ganhou uma chuteira

As travas tavam gastas

Deslizou a missa inteira

Chegou em casa cansado

Com os pés cheios de calo

E ainda tinha que rezar

A missa do galo

(Refrão 2x)

Tava guiando seu jipão

E de repente ele dormiu

E quando ele acordou

Estava no meio do rio

Tava quase se afogando

Seu pisante lhe salvou

A chuteira abençoada

Sobre a água flutuou

(Refrão 2x)

Solo

(Refrão 2x)

Hoje ele é famoso em todo lugar

O papa enciumado até mandou lhe excomungar

Mas Polica nem deu bola

Porque sabe que é o bonzão

Mas de 20 mil pessoas

Seguem sua procissão

(Refrão 2x)

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