Querendo ou não, todos vivem na mesma morada comum

Rosel Antonio Beraldo e Anor Sganzerla

Nos últimos dias temos acompanhado pelos mais diversos meios de comunicação disponíveis as fortes chuvas que estão assolando a Europa, uma situação climática de poder destruidor incalculável, muitos atônitos com tais fenômenos cada vez mais comuns ficam embasbacados ao ver a magnitude da natureza se expressando com fúria no velho continente tão cheio de si e com ares de superioridade em tudo. Fiquemos somente com a Alemanha: milhares de desaparecidos, centenas de mortos confirmados, imóveis destruídos, plantações arrasadas, inundações para todos os lados; nem mesmo um dos berços da mais alta cultura tem escapado à fúria titânica do tempo ou em outras palavras às mudanças climáticas extremas, resumindo: nem lá, nem aqui ninguém está livre de tais acontecimentos, a natureza sob múltiplos sinais apenas está apenas querendo nos alertar.

Controlar a natureza e o tempo sempre foi um grande desejo humano, muitas utopias tentaram tal façanha, ou seja, criar um mundo onde a lei humana prevalecesse a qualquer custo sobre toda a natureza extra-humana, natureza tida como imperfeita, má, cheia de erros, contradições em si mesma, os utopistas imaginaram seus mundos baseados apenas na razão instrumental. Entre tantos utopistas mencionamos aquele que talvez seja o mais arrojado, o mais decidido em pôr em prática um projeto que contenha o ser humano à frente de qualquer projeto, seu nome: Francis Bacon, um homem fruto da sua época, alguém preocupado com o destino da humanidade, sua receita para melhorar a condição humana: abandonar o passado, as tradições, deixar de lado aquele ensino que presumivelmente teria estagnado a mente do ser humano; Bacon destacava-se pela sua audácia desmedida.

Bacon nem de longe poderia imaginar que o seu projeto fosse tão adiante como de fato foi, Bacon estava imbuído das melhores e das mais nobres intenções, mas como todos sabem, dessas e outras mais o inferno está completamente abarrotado; todos os utopistas sem exceção nos prometeram n vezes a paz, uma vida melhor, uma sociedade organizada, bem planificada, um progresso cada vez mais crescente, acessível e igualdade para todos. Bacon estabeleceu um rígido controle para se obter um saber absoluto sobre a natureza, indicou ainda que os antigos erraram em muitos pontos e que agora o novo homem por ele idealizado deveria antes de tudo livrar-se da velha roupagem que desde sempre carrega, por isso dessacralizar até a última gota; Francis Bacon assim institui um fazer baseado na manipulação sem precedente de tudo e ao conseguir isso a vida de todos seria bem melhor.

Entretanto, através de um rigoroso exame, as utopias tanto de um lado como de outro, deram em nada ou quase nada, no mais das vezes deixaram atrás de si rastros para muitas reflexões que com o passar do tempo acabam tornando inviáveis toda e qualquer proposta utópica; uma proposta muito polêmica de Bacon é deixar a cargo dos homens de ciência conduzirem a vida humana por onde eles queiram, a contribuição desses é algo único e sem precedentes segundo Bacon, estes seriam os únicos a terem um culto especial por todas as contribuições que realizassem aos demais, Bacon como muitos depois dele estavam certos de que o futuro da Terra, assim como dos humanos só estaria garantido se um esforço total fosse dado para se conseguir o máximo saber de tudo, por isso separar esse tudo em quantas partes fosse possível; um fazer apenas na parte, mas isso não basta.

Controlar tudo pelas experiências, segundo os critérios de Francis Bacon acabou se revelando algo perigoso e por diversas vezes bem distante da realidade, nem sempre as experiências propostas por Bacon serviram para o bem da humanidade, ao longo do tempo a humanidade conviveu e tem convivido com problemas que a razão tecnocientífica é incapaz de solucionar; não se nega em absoluto a pontualidade de certas conquistas que muito favoreceram os seres humanos. O século XX viu o ideal baconiano ser levado ao extremo com consequências que se observam até hoje, não raro somos testemunhas oculares de eventos em que a ciência um dia se propôs a querer solucionar e até hoje não nos deu uma resposta satisfatória; enchentes como as da Europa, incêndios aqui e acolá, secas, crises hídricas e virais nos alertam de que não temos aquele tão sonhado controle.

Bioeticamente, hoje todos aqueles pequenos conflitos dos quais todos acabamos se tornando vítimas querem nos dizer muito mais do que a nossa imaginação singular quer nos demonstrar, na maioria das vezes a humanidade tem ficado apenas e tão somente na superfície das possíveis soluções a serem adotadas, não há preocupação séria em querer se solucionar os problemas que afetam a todos em diferentes escalas, nosso mundo foi moldado em bases insustentáveis, uma visão distorcida dos fatos, bem como da vida nos levaram às profundas desigualdades que temos hoje. Num momento em que a pós-verdade (a minha verdade é que conta e nada mais interessa), tem se revelado mais tirânica do que benevolente, em nome dela tem se erguido bandeiras mentirosas que tentam justificar todo e qualquer ato de barbárie em nome de um suposto bem qualquer; as tão badaladas miragens de Francis Bacon no fim das constas nos mostraram todas as incertezas a que estamos expostos a curto, médio e longo prazo; apenas a nossa vulnerabilidade é certeira. 

Rosel Antonio Beraldo, mora em Verê-PR, Mestre em Bioética pela PUCPR, Especialista em Filosofia pela PUC-PR; Anor Sganzerla, de Curitiba-PR, é Doutor e Mestre em Filosofia, é professor titular de Bioética na PUCPR

você pode gostar também
Deixe uma resposta