Parece um questionamento sobre um mundo pós-pandemia, mas ele foi definido muito antes de a covid-19 paralisar o globo e adiar o evento em um ano. “A gente poderia dizer que sorte achar um tema que funciona neste momento”, disse ao Estadão o curador-assistente da Bienal, o brasileiro Gabriel Kozlowski. “Se você pensar nas questões que a gente está querendo debater, elas são causas que levaram à pandemia. A maneira como a gente lida com a nossa natureza e como destruímos os recursos naturais, essa intolerância, essa polarização que leva a não aceitar outros grupos. Tudo isso vai se somando para chegar a um momento em que o ecossistema não aguenta e gera uma pandemia como esta. Ou seja, as questões que a gente colocou não são relevantes apenas agora. Na verdade, muitas delas são o caminho que leva a uma pandemia como essa.”
É um ano importante para o Brasil na Bienal de Arquitetura. Além de ter Kozlowski como curador-assistente, Lina Bo Bardi (1914-1992), arquiteta nascida na Itália que adotou o Brasil como pátria e fez projetos fundamentais como os do Museu de Arte de São Paulo (Masp), Sesc Pompeia e Teatro Oficina, é homenageada com o Leão de Ouro póstumo por sua carreira – o espanhol Rafael Moneo também é celebrado com um Leão de Ouro.
Há uma sala para a Amazônia, com a videoinstalação Oca Red, uma colaboração do designer Gringo Cardia com a organização People’s Palace Projects, ligada à Queen Mary University of London, e o cineasta Takumã Kuikuro, além de um projeto do Atelier Marko Brajovic. O escritório spbr arquitetos e a artista Mabe Bethônico também estão presentes, e há obras dedicadas ao Rio de Janeiro e São Paulo no segmento Coabitações.
O tema do Pavilhão Brasileiro é Utopias da Vida Comum. Os povos originários brasileiros também estão presentes na exibição Future Assembly, uma colaboração de Caroline A. Jones, Hadeel Ibrahim, Kumi Naidoo, Mariana Mazzucato, Mary Robinson, Olafur Eliasson, Paola Antonelli e Sebastian Behmann, que reúne dimensões mais que humanas para o “nós” da pergunta do tema da Bienal. Kuikuro e Cardia mandaram um tronco de madeira do Kuarup, a festa sagrada dos povos do Xingu, que também será encenada no encerramento do evento, em novembro. “Somos guardiões da floresta. Queremos mostrar quem são os povos indígenas. E o sonho está sendo realizado na Bienal de Veneza”, disse Takumã Kuikuro em entrevista ao Estadão. “O audiovisual mostra a nossa realidade, nossa organização, nossa preocupação”, completou.
Foi em 2016 que Paul Heritage, diretor do centro de arte e pesquisa People’s Palace Projects, convidou Gringo Cardia, com quem trabalha desde 1998, para visitar a aldeia Kuikuro, no Alto Xingu. Foram três semanas lá, num projeto de residências artísticas com curadoria dos próprios indígenas. Elas acabaram rendendo frutos, como a videoinstalação que já foi apresentada no Horniman Museum em Londres em 2018, e na Affirmation Gallery em Nova York em 2019. Ao receber o convite da Bienal e tentar responder à pergunta “como nós viveremos juntos?”, eles perceberam que os indígenas tinham uma resposta muito forte para isso. “Basicamente, a gente deveria viver juntos como eles vivem juntos, não como nós vivemos juntos”, afirmou Heritage. “Além de tudo, foi um pouco depois da eleição, quando começaram os ataques bárbaros aos povos indígenas em seus territórios. Então, foi meio óbvio quando a gente recebeu o convite que qualquer plataforma internacional seria importante. Não que a instalação fale diretamente sobre isso. Não há ataques. Mas é importante para os povos indígenas ter uma nova narrativa. Porque a narrativa dos últimos 18 meses é de morte, doença, perda, ausência, uma ameaça existencial. Então a gente está fazendo o contrário. Esta é uma narrativa de esperança, de fé, de confiança, de acreditar na importância dos povos indígenas do Brasil. E não de maneira abstrata, mas mostrando como eles vivem e porque é importante para todos nós esta diversidade cultural, política, social.”
Para Gringo Cardia, a pandemia só acentuou a importância de viver em mais harmonia com a natureza. “É fundamental dar voz a esses povos. Aprendemos muito com eles. A pandemia veio dar uma porrada em quem só acredita em tecnologia. Olha o mundo que está aí”, disse o designer. Inclusive porque os próprios indígenas fazem uso da tecnologia. “Eles são pessoas contemporâneas que vivem no século 21.”
Kozlowski concorda. “A gente está perdendo a possibilidade de aprender coisas com esses outros povos, que têm muito a ensinar, principalmente porque temos a necessidade de sair do ponto de vista muito antropocêntrico, em que a natureza está aqui para servir o homem, para ter uma relação mais de simbiose com a natureza”, disse. “Outra coisa é a polarização que o mundo está vivendo. Quando a Bienal pergunta como nós viveremos juntos, ela está perguntando como vai ser possível ir além dessas divisões e tentar procurar ser mais compreensivo, ou ser mais aberto a configurações para aceitar o outro. Esta Bienal trata dessas questões.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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