Lemos no Texto-Base da Campanha da Fraternidade de 2024: “A amizade é um sentimento fiel de estima entre as pessoas, é um dom de Deus, um fenômeno humano universal, que nasce da livre oferta de si mesmo para abrir-se ao mistério do outro. É um caminho de humanização e de renovação das relações fraternas, que nos permite existir e viver com a responsabilidade e o compromisso de transformar a própria vida e a vida do outro. Como é bom termos amigos!” (n. 6).
A introdução ressalva que certas palavras e expressões são difíceis de serem comunicadas e conceituadas. A amizade é uma delas. “Há, igualmente, conceitos que, de tão usados e tão mal-usados, perdem a capacidade de expressar o que realmente significam. Fraternidade é uma delas. Por isso, é muito importante que busquemos nos clássicos o conhecimento dos seus significados. A amizade no mundo dos clássicos tem um papel central. É o modelo de todas as relações humanas pessoais, familiares, políticas e espirituais. Os gregos consideravam a amizade como hoje consideramos o amor” (n. 8).
Com o advento da pólis e sua diversidade étnica e intelectual, abre-se na sociedade grega um pedaço de liberdade e espontaneidade; nas relações e pessoalidade e a subjetividade se fortalecem. Com Sócrates (470-399ac), a amizade ganha contorno pessoal e se restringe ao âmbito humano. Uma vez que Sócrates não deixou escritos, são seus discípulos, especialmente Xenofonte (430-355aC.) e Platão (428-347aC.), que nos transmitem seu pensamento. Xenofonte afirma: “Os homens têm naturalmente o sentimento de amizade. Necessitam uns dos outros, capitulam à piedade, socorrem-se mutuamente, compreendem-se e se mostram gratos. (…) A amizade vence todos os obstáculos para unir os corações virtuosos: que é graças à virtude, preferem os homens possuir em paz haveres moderados a tudo dominar pela guerra” (cf. n. 10).
A amizade define as comunidades humanas
Já Platão, em seus Diálogos, compreende a amizade em sua dimensão transcendental, como abertura das pessoas que se relacionam para o belo, o bom e o verdadeiro. Para ele, a ‘amizade é uma estrutura basilar, sua função é primordial para a reorganização sociopolítica de uma comunidade, servindo como tecido social que possibilita o fortalecimento de uma comunidade, pois impele os seus a serem virtuosos, a imitar o Sumo Bem. (…) Quando uma comunidade sofre de um mal, que pode afetar o seu conjunto, ocasionando uma desestruturação, o caminho proposto por Platão para a sua reconstrução só pode ser dar por meio de um grupo pequeno de homens com os mesmos ideais e valores, que sirva de célula germinal para um novo organismo’. Enfim, para Platão, a amizade ‘é a forma fundamental de toda a comunidade humana que não seja puramente natural, mas sim uma comunidade espiritual e ética’ (cf. n. 11).
Aristóteles (384-322 a.C.), o pensador antigo que mais refletiu sobre a amizade de maneira orgânica e sistemática, afirma: “A amizade é o vínculo social por excelência, que mantém a unidade entre os cidadãos de uma mesma cidade, ou entre companheiros de um grupo, ou entre os membros de uma empresa”. Para ele a amizade social é uma virtude capaz de aperfeiçoar a natureza humana, posto que “no amigo encontramos um ‘outro eu’ que nos proporciona algo que nós mesmos sozinhos não podemos alcançar e sem ele não é possível dar início a processo de humanização, uma vez que reconhece o outro como mediador, como aquele que me permite abrir para a alteridade”. Para Aristóteles, a amizade verdadeira não é provocada por uma paixão, mas motivada por um ato de eleição, ou seja, uma escolha da vontade que se segue à deliberação da inteligência. Esta amizade é caracterizada pela sinceridade, pela fidelidade e pelo desinteresse, é oposta ao egoísmo, ao orgulho e à adulação. Amizade é amar o outro por si mesmo, por aquilo que ele é e não por aquilo que ele me pode oferecer. Para Aristóteles, só a amizade civil possibilita a vida virtuosa que frutifica na amizade perfeita. Por isso, na Ética a Eudemo, ele afirma que “a política deve ter objetivo de fomentar a amizade virtuosa” (cf. n. 12).
Dom Edgar Xavier Ertl – Diocese de Palmas-Francisco Beltrão
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