Rosel Antonio Beraldo e Anor Sganzerla
Étienne de La Boétie (1.530-1.563) deixou para a humanidade uma pequena obra chamada “Discurso da Servidão Voluntária”, nesse escrito La Boétie faz constatações que hoje são a “normalidade” para muitos, isto é, viver uma existência diante do despotismo sem nenhum sinal de criticidade, sem nenhuma vontade de querer reverter a situação, acomodar-se diante dos infortúnios para quem sabe lá na frente tudo melhorar. Acomodar-se para La Boétie é fadar-se a uma morte prematura, tirania e servidão andam de mãos dadas, os tiranos de hoje que usam tais artifícios têm a seu dispor um farto material, eles dão a sensação de querer o bem comum, quando na verdade levam a destruição por onde quer que passem; destruir a razão, a liberdade e a alma, esses hoje são o grande intento daqueles que não suportam o diferente, aqueles que não aceitam que o mundo é diverso.
O momento é de vigilância cerrada em todas as etapas da vida, pode ser explícita, mas quase sempre é velada, discreta, algo como que querendo fazer-nos crer que ela não existe, a mercantilização da vida está até mesmo nos lugares mais insuspeitos e recônditos dessa virada epocal da qual muito poucos estão dando a devida atenção, é o momento da diversão barata por excelência, contexto do qual praticamente não há escapatória, pressão permanente para que tudo seja uniforme, isto é, alimentação, vestuário, pensamento, home office, uma crença ilusória que cada um pode se moldar a seu bel prazer sem interferência de terceiros e muito menos da ajuda e solidariedade do outro; o contexto global que ameaça a diversidade em muito é promovido pelas redes antissociais que povoam nosso imaginário, redes essas que nada tem de neutras ou inocência, caímos facilmente em suas armadilhas.
Vivemos num tempo específico onde a monocultura da vida é moldada por aparelhos aparentemente inofensivos que nos dão aquela sensação que somos realmente fortes, que tudo podemos a qualquer hora do dia ou da noite, a rapidez do nosso imaginário, as válvulas de escape tão bem criadas e estilizadas ao gosto de cada um, acabou nos levando para labirintos inesperados e de difícil solução para se encontrar a porta de saída. A monocultura vigente é aquela onde cada um escolhe a si mesmo como referencial teórico e prático para todas as dimensões da sua existência; os últimos dois anos atormentados pela crise viral foram extremamente propícios para que cada um criasse sua bolha, a sua rotina, o seu deserto habitual, essa ilusão do eu, me, mim, comigo é completamente desprovida de bases sólidas, nada nem ninguém por mais isolado que esteja consegue viver sem o outro.
Debruçando-se então mais especificamente naquilo que realmente nos faz ficar em pé, importa salientar que tudo aquilo que nos rodeia é vital, todas as conexões existentes mostram de modo inequívoco que a biodiversidade é importante, nosso corpo é composto por muitos elementos e que faltando ou excedendo um deles apenas, pode acarretar sérios riscos para a nossa vida; imaginar um corpo totalmente modificado a nosso bel prazer, deixando de lado certas substâncias de importância única pode trazer sérios riscos a qualquer hora do dia ou da noite. Hoje infelizmente, alguns querem dar primazia apenas para uma só dimensão (econômica) e é justamente essa dimensão que está levando a humanidade a beira do precipício, querem nos fazer esquecer que outras tantas dimensões são tão importantes quanto aquela; o ser humano lobotomizado monoculturamente é fraco.
Nosso querido, lindo Brasil embarcou de cabeça no mundo monocultural sem avaliar detalhadamente as consequências dessa opção diante da sustentabilidade da vida a longo prazo; cegueira, surdez, mudez tão bem orquestradas têm levado os seres humanos a cometerem erros que vem aumentando a cada ano. O Brasil adotou como programa de crescimento apenas priorizar aquilo que produz mais rápido, que tenha maior valor comercial apenas para vender lá fora, esquecendo que aqui dentro vivemos uma situação pautada pela escassez, vive-se com as migalhas que por aqui são deixadas; quando se anda por este incrível país não deixa de causar espanto os desertos verdes, esse profundo desarranjo ambiental, um motor que a cada dia que passa vem nos dando mostras que pode fundir a qualquer momento, eis o tempo proclamado pela racionalidade exagerada.
Bioeticamente, o mundo condicionado pela monocultura limita muito a visão de mundo, reduz nossas capacidades em enxergar o todo, o ser humano diante apenas uma opção acaba por perder toda a rica complexidade que está para nos auxiliar em todas as tarefas, esse mesmo ser humano tendo diante de si apenas a sua imagem como ponto de partida e chegada é responsável pela baixa qualidade de vida que está presente em todas as instituições. A monocultura assumida pelo ser humano promete muito e cumpre pouco daquilo que se propõe, simplificar as nossas relações não diminui nossas expectativas, não ameniza os nossos temores em relação ao dia de amanhã e muito menos nos mostra soluções práticas, tudo na monocultura foi, é e será: quem sabe, talvez, depende, poderá, essas e tantas outras palavras acabaram caindo na banalidade e descrédito perante a vida que aí se encontra; nada mais perceptível do que o fracasso da monocultura da globalização, essa prometeu um novo Éden, que agora está mais para o inferno de Dante.
Rosel Antonio Beraldo, mora em Verê-PR, é Mestre em Bioética, Especialista em Filosofia pela PUC-PR; Anor Sganzerla, de Curitiba-PR, é Doutor e Mestre em Filosofia, é professor titular de Bioética na PUCPR