(Paulo Argollo)
Conhecer cada vez mais profundamente a história do Brasil e do mundo é muito revelador. É, ao mesmo tempo, instigante e aterrorizante. Aterrorizante principalmente para nós, brasileiros. O maior exemplo disso é olhar para a sociedade hoje em dia, 2021, e ver que ainda tem gente que desdenha o Dia da Consciência Negra, diz que é exagero, frescura, mimimi. Esse é um dos maiores terrores de ser brasileiro. O país que foi o último do mundo civilizado a abolir os escravos. Que depois da abolição relegou os negros aos morros e periferias. Negros que nunca tiveram tratamento igual aos brancos. Quem nega isso como fato, nega sua própria existência e a história do Brasil. História que no futuro não vai mudar os acontecidos nos séculos passados, mas vai poder exaltar o esforço da sociedade moderna em reconhecer e reparar tais erros.
O Brasil foi essencialmente erguido pelos braços dos negros, tanto material, quanto culturalmente. Do período colonial, duas figuras negras ganharam destaque: Zumbi e Chica da Silva. Zumbi já teve sua existência amplamente discutida, foi mitificado e virou uma verdadeira lenda, um símbolo de resistência. Já Chica da Silva é uma personagem bem mais fragmentada, cheia de camadas, ou melhor, versões. Além do mais, é mulher. Uma mulher que se destacou em uma sociedade essencialmente masculina e preconceituosa. Chica da Silva é uma figura única da história brasileira e merece ser reconhecida com altivez.
Nascida de uma relação entre um português branco e uma escrava, sua data de nascimento é desconhecida, mas estima-se que ela nasceu entre os anos de 1731 e 1735, na região de Arraial do Tijuco, atual cidade de Diamantina, Minas Gerais, justamente na época em que o ouro na região começava a perder força, mas os primeiros veios de diamante eram descobertos. A exploração de diamantes foi tão exuberante que o preço da pedra preciosa na Europa caiu vertiginosamente, tamanha a abundância do produto. Mesmo sendo filha de um capitão português, Francisca da Silva de Oliveira não foi alforriada. Pelo contrário, ainda criança foi vendida como escrava para um médico.
Era comum, na época, que escravas de 13, 14 anos de idade já fossem consideradas mulheres, e sofriam abusos frequentes de seus donos, homens brancos. Com Chica da Silva não foi diferente. Ainda adolescente, ela teve seu primeiro filho, Simão Pires Sardinha, filho do médico Manuel Pires Sardinha. Em 1753, João Fernandes de Oliveira chega de Portugal para exercer o ofício de negociador de diamantes, uma espécie de intermediador das pedras preciosas entre o Brasil e a coroa portuguesa. Já era um homem de posses, e com o diamante brasileiro enriqueceu ainda mais. Logo ao chegar, ele já comprou de Manuel Pires Sardinha a jovem Chica da Silva, então com vinte e poucos anos. Ele ficou encantado por ela. Em menos de dois meses depois de comprá-la, ele a deu sua carta de alforria. Eles não se casaram, mas viveram abertamente como um casal perante a sociedade, tendo vários filhos. Chica da Silva marcou a sociedade de Diamantina, pois viveu uma vida de rainha. Era riquíssima, andava pela cidade rodeada de mucamas, vestida com as mais finas roupas. Ela teve 13 filhos com João Fernandes de Oliveira, quatro homens e nove mulheres. Os meninos estudaram nos melhores colégios da província e depois foram para Coimbra, em Portugal concluir os estudos. As meninas foram para o Recolhimento de Nossa Senhora da Conceição de Monte Alegre de Macaúbas, o mais conceituado convento e educandário de freiras, onde estudavam as filhas da elite mineira. Chica da Silva e João Fernandes de Oliveira viveram juntos por 17 anos. Em 1770, ele teve que voltar para Portugal para resolver problemas relativos ao inventário de seu pai, que falecera. Especula-se que, por desentendimentos com o famoso Marquês de Pombal, João Fernandes de Oliveira não voltaria ao Brasil. Mas deixou Chica da Silva e suas 9 filhas com dinheiro e bens suficiente para que elas vivessem confortavelmente para o resto de suas vidas. Os 4 filhos foram com o pai a Portugal, e por lá ficaram.
Chica da Silva morreu em 1796 e foi sepultada na igreja de São Francisco de Assis, local onde eram enterradas as pessoas mais importantes e ricas da sociedade de Diamantina. Após sua morte, ela acabou virando um mito da região, porém era lembrada sempre como uma mulher fria, vulgar, que conquistava riquezas através do sexo. Essa visão foi reforçada por Joaquim Felício dos Santos, advogado e escritor mineiro que lançou, em 1868, o livro Memórias do Distrito Diamantino. Compreensível que assim fosse, já que a visão da esmagadora maioria no século XIX ainda era extremamente preconceituosa e racista. Entretanto, à medida que novos estudos foram sendo realizados, descobria-se que não era bem assim. Além de serem pais exemplares para seus 13 filhos, lhes dando tudo do melhor, o casal Chica e João realmente eram apaixonados um pelo outro. Depois da partida de João Fernandes de Oliveira para Portugal, em 1770, até sua morte, 1796, não há sequer um relato de que Chica da Silva tenha tido outro relacionamento amoroso, por exemplo.
Na década de 1950, a escritora Cecília Meireles começou a mudar o modo como o mito de Chica da Silva era visto. Em Romanceiro da Inconfidência, Chica da Silva é retratada como uma mulher forte, lindíssima e alegre. Vinte anos depois, em 1976, Cacá Diegues revitaliza o mito com o filme Xica da Silva. No contexto da época, o apelo sexual coloca Chica da Silva como uma mulher livre, inclusive sexualmente, se permitindo ter prazer com o homem que ama e desfrutando de tudo que o dinheiro podia lhe dar. De fato, essa é a imagem que vale ser exaltada dessa personagem. Ainda que ela não tivesse ideais abolicionistas (um conceito muito pouco difundido na época entre os brasileiros), era uma mulher forte e que tentou de todas as formas fazer parte da sociedade. E este é o grande ponto a ser tratado.
Mesmo com todo o dinheiro que possuiu, Chica da Silva nunca foi tratada como uma igual entre a sociedade. Ela fazia parte das mais importantes comunidades religiosas da cidade, com doações polpudas. E sabidamente ela era tolerada em tal círculo somente por conta de suas doações. Ainda que João Fernandes de Oliveira fosse um dos homens mais importantes da elite mineira, nenhum de seus filhos teve padrinhos a altura do status do pai, pois eram filhos de uma mãe negra. Em seus hábitos, roupas, atitudes, Chica da Silva tentou ao máximo se “embranquecer” para ser incluída numa sociedade que jamais realmente a aceitaria.
Eu sei que falando assim parece que isso é um demérito, ela não assumir sua negritude e suas origens e, com o poder que o dinheiro lhe permitia, tentar jogar isso na cara da sociedade. Mas no contexto da época, o simples fato de uma mulher negra ser livre, bem vestida, verdadeiramente amada e ter um mínimo de erudição já era um ato de resistência.
Chica da Silva deve ser exaltada como uma mulher incrível, forte, linda, exuberante e que deixou sua marca na história brasileira. Se tornou um ícone a ser celebrado pela comunidade negra e pelas mulheres de maneira geral. Mais importante que isso é conhecer toda a história que rodeia a trajetória de Chica da Silva. Conhecer o Brasil brutalizado pela ganância portuguesa, a sordidez da elite que vivia naquela época e entender como este país foi sendo erguido, às custas de quanta lágrima, quanto suor e quanto sangue.
Repetindo: o último país a abolir os escravos, o país que ainda relega os negros às periferias e morros. Não podia ser um nome mais adequando para este dia. Dia da Consciência Negra. Consciência de tudo que os negros já sofreram e ainda sofrem, talvez até a gente já tenha. Agora falta tomar atitudes para começar a mudar e reparar isso.
HOJE EU RECOMENDO
Disco: Africa Brasil
Ano de lançamento: 1976
Uma obra prima! Uma celebração de harmonias incríveis, ritmo e melodias saborosíssimas, que exaltam a cultura negra, de Chica da Silva a Babaraum (Umbabarauma). Disco essencial.
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