Se não foi a primeira filicida da história – antes dela, conta a Bíblia, Abraão esteve a um passo de sacrificar o filho, Isaac, ao Senhor -, Medeia talvez tenha sido a mais célebre da mitologia. Filha do rei Eetes, da Cólquida, neta do deus Sol, ela traiu seu povo e matou o próprio irmão enlouquecida de desejo por Jasão. Para ele, roubou o Tosão de Ouro e tornou-se maldita. Quando o marido a repudiou para unir-se a Gláucia, filha de Creonte de Corinto – e tornar-se rei -, sua vingança foi cruel. Medeia matou os próprios filhos.
Essa história é contada na tragédia de Eurípedes e no conto mítico de Jasão e os Argonautas. Virou filmes, no plural, de Pier Paolo Pasolini, com Maria Callas, e de Lars Von Trier, com Kirsten Olesen. Callas é uma soberba Medeia, uma máscara de dor e sofrimento, e só no desfecho, ela solta a voz. A voz da Callas. Pasolini já havia bebido em Sófocles para fazer seu Édipo Rei. Em Eurípedes, buscou a tragédia do feminino.
Medeia lamenta que deseje tanto o homem que odeia. Diz que gostaria de trucidá-lo e, no entanto, deitaria agora com ele, se a desejasse: Ai de mim. Sendo uma tragédia que move mar e terra, e atinge a cosmogonia do Sol – o irmão, que retorna como fantasma, diz que quem planta a escuridão não pode colher a luz -, são famosas as lamentações da mulher traída.
A bordo do Argos, e com Jasão, ela singrou os mares e duas vezes seu ventre inchou. Mas tudo isso é passado. Jasão queixa-se de que Medeia nunca o amou, apenas o irmão que matou. E ela – “Quanto mar, quanto leite, quanto sangue derramado”. Você ainda pode ver Medeia como programa avulso na plataforma Belas Artes à La Carte. O programa estará disponível até julho. Durante a pandemia, e por conta do isolamento, o teatro virou híbrido – gravado, filmado. Houve coisas interessantes nesses processos. Existe agora a Medeia de e com Bete Coelho. Ela assina a direção com Gabriel Fernandes. Ele assina fotografia, câmera, montagem. A produção é da BR116, que exibe o trabalho em seu canal no YouTube, e da Teatrofilme. Poucas vezes o preto e branco foi tão esplendoroso.
Talvez esteja no olhar de quem vê. Em 1930, ainda na era de ouro do cinema soviético, Alexandre Dovjenko fez de Terra, o mais belo (e telúrico) poema revolucionário do cinema. Os campos de girassóis filmados em PB formam o cenário glorioso do que já era uma tragédia. O jovem urina no trator para batizá-lo. Vem por aquela estrada, feliz e cantando. Irá se casar. Morre assassinado, um tiro. Em 1961 e, depois, em 76, o grego Michael Cacoyannis e seu grande fotógrafo inglês Walter Lassaly fizeram Electra, a Vingadora e Ifigênia. Entre os dois filmes, as duas tragédias, fizeram também As Troianas. O lamento de (H)Écuba, Ai de mim. Electra e Ifigênia são as melhores. O preto e branco é suntuoso. Coloca na tela um mundo bárbaro e primitivo. Na concepção de Fernandes (e Bete), Medeia é uma tragédia do desejo.
Medeia deseja Jasão, que deseja o trono de Creonte, que deseja Medeia. Um vidro separa os personagens em cena, mas é somente para que, muitas vezes, e pelo efeito do reflexo, os rostos e corpos se confundam, e se interpenetrem. Na terra, está enterrado o vestido de ouro que o Sol deu à neta, e que Medeia vai usar para se vingar de Clélia. Terra, fogo, mar. Medeia, a Feiticeira do Amor, título do filme de Pasolini no Brasil. O feitiço vira-se contra a feiticeira. A Medeia de Fernandes e Bete é a revista por Consuelo de Castro. Proibida pela censura do regime militar, sua primeira peça, Prova de Fogo, só foi montada nos anos 1990, com outro título, A Invasão dos Bárbaros. Bastou a segunda, À Flor da Pele, para torná-la famosa. À Flor da Pele virou filme, de Francisco Ramalho Jr. Ganhou Gramado.
Consuelo escreveu outras peças retratando casais, e dando voz a mulheres libertárias, que se rebelam e recusam ser oprimidas. Seu texto Medeia – Memórias do Mar Aberto teve leitura dramática em 1997. O mar que entra em cena é lindamente estilizado. Poderia ser o mar de celofane dos filmes finais de Federico Fellini. É um mar de gravetos, e Jasão cospe na cara dela. Medeia está presa a esse barco podre, sonhando fugir (com ele). O universo mítico é fechado, não oferece saída. Todo mundo paga um alto preço. Jasão, para se sentar no trono.
Medeia, para se vingar. Bete é poderosa soltando o verbo em closes que, ao mesmo tempo, a vulnerabilizam. Os homens, viris, destacam-se pela careca imposta aos atores. Poucas vezes o híbrido funcionou tão bem nessa pandemia. Teatrofilme ou cinema? As velhas teorias de teatro e cinema não estão mais dando conta das transformações ocasionadas pelo isolamento na era do coronavírus. Cinema, teatro. Nada está sendo como antes. Será preciso esperar pelo retorno à normalidade para ver.
Essa história é contada na tragédia de Eurípedes e no conto mítico de Jasão e os Argonautas. Virou filmes, no plural, de Pier Paolo Pasolini, com Maria Callas, e de Lars Von Trier, com Kirsten Olesen. Callas é uma soberba Medeia, uma máscara de dor e sofrimento, e só no desfecho, ela solta a voz. A voz da Callas. Pasolini já havia bebido em Sófocles para fazer seu Édipo Rei. Em Eurípedes, buscou a tragédia do feminino.
Medeia lamenta que deseje tanto o homem que odeia. Diz que gostaria de trucidá-lo e, no entanto, deitaria agora com ele, se a desejasse: Ai de mim. Sendo uma tragédia que move mar e terra, e atinge a cosmogonia do Sol – o irmão, que retorna como fantasma, diz que quem planta a escuridão não pode colher a luz -, são famosas as lamentações da mulher traída.
A bordo do Argos, e com Jasão, ela singrou os mares e duas vezes seu ventre inchou. Mas tudo isso é passado. Jasão queixa-se de que Medeia nunca o amou, apenas o irmão que matou. E ela – “Quanto mar, quanto leite, quanto sangue derramado”. Você ainda pode ver Medeia como programa avulso na plataforma Belas Artes à La Carte. O programa estará disponível até julho. Durante a pandemia, e por conta do isolamento, o teatro virou híbrido – gravado, filmado. Houve coisas interessantes nesses processos. Existe agora a Medeia de e com Bete Coelho. Ela assina a direção com Gabriel Fernandes. Ele assina fotografia, câmera, montagem. A produção é da BR116, que exibe o trabalho em seu canal no YouTube, e da Teatrofilme. Poucas vezes o preto e branco foi tão esplendoroso.
Talvez esteja no olhar de quem vê. Em 1930, ainda na era de ouro do cinema soviético, Alexandre Dovjenko fez de Terra, o mais belo (e telúrico) poema revolucionário do cinema. Os campos de girassóis filmados em PB formam o cenário glorioso do que já era uma tragédia. O jovem urina no trator para batizá-lo. Vem por aquela estrada, feliz e cantando. Irá se casar. Morre assassinado, um tiro. Em 1961 e, depois, em 76, o grego Michael Cacoyannis e seu grande fotógrafo inglês Walter Lassaly fizeram Electra, a Vingadora e Ifigênia. Entre os dois filmes, as duas tragédias, fizeram também As Troianas. O lamento de (H)Écuba, Ai de mim. Electra e Ifigênia são as melhores. O preto e branco é suntuoso. Coloca na tela um mundo bárbaro e primitivo. Na concepção de Fernandes (e Bete), Medeia é uma tragédia do desejo.
Medeia deseja Jasão, que deseja o trono de Creonte, que deseja Medeia. Um vidro separa os personagens em cena, mas é somente para que, muitas vezes, e pelo efeito do reflexo, os rostos e corpos se confundam, e se interpenetrem. Na terra, está enterrado o vestido de ouro que o Sol deu à neta, e que Medeia vai usar para se vingar de Clélia. Terra, fogo, mar. Medeia, a Feiticeira do Amor, título do filme de Pasolini no Brasil. O feitiço vira-se contra a feiticeira. A Medeia de Fernandes e Bete é a revista por Consuelo de Castro. Proibida pela censura do regime militar, sua primeira peça, Prova de Fogo, só foi montada nos anos 1990, com outro título, A Invasão dos Bárbaros. Bastou a segunda, À Flor da Pele, para torná-la famosa. À Flor da Pele virou filme, de Francisco Ramalho Jr. Ganhou Gramado.
Consuelo escreveu outras peças retratando casais, e dando voz a mulheres libertárias, que se rebelam e recusam ser oprimidas. Seu texto Medeia – Memórias do Mar Aberto teve leitura dramática em 1997. O mar que entra em cena é lindamente estilizado. Poderia ser o mar de celofane dos filmes finais de Federico Fellini. É um mar de gravetos, e Jasão cospe na cara dela. Medeia está presa a esse barco podre, sonhando fugir (com ele). O universo mítico é fechado, não oferece saída. Todo mundo paga um alto preço. Jasão, para se sentar no trono.
Medeia, para se vingar. Bete é poderosa soltando o verbo em closes que, ao mesmo tempo, a vulnerabilizam. Os homens, viris, destacam-se pela careca imposta aos atores. Poucas vezes o híbrido funcionou tão bem nessa pandemia. Teatrofilme ou cinema? As velhas teorias de teatro e cinema não estão mais dando conta das transformações ocasionadas pelo isolamento na era do coronavírus. Cinema, teatro. Nada está sendo como antes. Será preciso esperar pelo retorno à normalidade para ver.
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