Paulo Argollo
Semana passada, escrevi sobre o Roubo da Lufthansa, que ficou conhecido como o maior roubo da história, dada a quantidade de dinheiro furtado. O crime aconteceu na madrugada do dia 11 de dezembro. Claramente este é um mês marcado por dois roubos célebres. O Roubo da Lufthansa é um deles, que ganhou manchetes no mundo todo. O outro também foi noticiado mundialmente e ficou marcado, nem tanto pelo seu valor monetário, mas sim pela sua representatividade. No dia 19 de dezembro de 1983, no Rio de Janeiro, era roubada a taça Jules Rimet.
O roubo da Jules Rimet é ainda hoje fascinante e envolto em mistérios e incertezas. De certa forma, todo o contexto do roubo e do andamento das investigações para recuperar a taça dizem muito sobre o Brasil. Um país acostumado a ilegalidades e a impunidade, burocrático, amador e despreparado. E a taça representava o oposto. Representava um país vitorioso, ousado, preparado, cheio de talentos e otimista. Lógico que é super leviano se meter a resumir um país inteiro, cheio de camadas, de maneira tão simplória. Mas, com certeza, o Brasil do roubo e o Brasil da taça fazem parte dessas camadas todas.
Jules Rimet era francês e foi presidente da Fifa entre os anos 1921 a 1954. Foi ideia dele fazer com que a taça dada ao campeão de cada Copa do Mundo de Futebol fosse a mesma, e que essa taça ficaria definitivamente com o país que conquistasse o título por três vezes, algo considerado muito difícil de acontecer. Quando a primeira edição da Copa do Mundo aconteceu, em 1930, a taça foi batizada com o nome do presidente da Fifa, Jules Rimet, que tanto se esforçara para realizar o campeonato. Com exceção de 1942 e 1946 (período da Segunda Guerra Mundial), o torneio aconteceu a cada quatro anos e a taça foi passando de país em país, de acordo com quem vencia. Em 1962, a Copa do Mundo aconteceu no Chile e o Brasil foi campeão pela segunda vez — a primeira foi em 1958, na Suécia.
A Jules Rimet estava sob a responsabilidade do Brasil, mas foi para a Inglaterra em 1966, país que sediou a competição naquele ano. Na Inglaterra, a taça foi exposta em uma galeria e acabou sendo roubada! Mas foi só um susto. A Scotland Yard agiu rápido, encontrou e prendeu o ladrão, que se recusou a dizer onde escondera a taça. Foi o cachorrinho Pickles que a acabou encontrando farejando entre um monte de papéis e jornais na casa do ladrão. Ainda em 1966 os anfitriões ingleses se sagraram campeões e ficaram com a Jules Rimet até 1970, quando aconteceu a Copa do México.
A história do tricampeonato brasileiro por si só daria um texto incrível. O Brasil afundado numa ditadura truculenta e opressora contrastava com a energia, brilhantismo, leveza e alegria do futebol que a seleção apresentava em campo. No início da Copa muita gente pensava duas vezes antes de demonstrar algum ufanismo ou patriotismo por conta da situação política do país. Mas, à medida que a seleção avançava, todo mundo acabou sendo contagiado e a festa do tri foi linda. E o melhor: pudemos gritar: A Taça do Mundo é Nossa! E ela foi nossa até o famigerado dezembro de 1983.
Sérgio Peralta era um malandro convicto e representante do Atlético Mineiro na CBF. Por isso ele conhecia muito bem o prédio da Confederação Brasileira de Futebol e, de tanto olhar para os troféus ali expostos frequentemente, resolveu bolar um plano para roubar o maior deles: a Jules Rimet. Para tal empreitada, convocou seu amigo de longa data, Luiz Bigode, e um experiente comerciante de ouro por baixo dos panos chamado Chico Barbudo. Sim, senhoras e senhores. O símbolo maior do nosso futebol foi roubado pelo trio Peralta, Bigode e Barbudo.
Como se já não fosse ridículo suficiente, o roubo, com o perdão do trocadilho, foi uma barbada! A taça estava na sala do presidente da CBF, num compartimento protegida por um vidro blindado, super difícil de quebrar. Acontece que esse vidro estava preso por uma fina moldura de madeira parafusada na parede. Os criminosos não precisaram quebrar o vidro, só desparafusá-lo.
Mas é claro que os bandidos tinham noção que estavam roubando uma réplica, pois era sabido por muita gente que a taça mesmo estava guardada num cofre. Com certeza aquela réplica já valeria alguma coisa. Pois não é que no dia seguinte, quando a notícia do roubo veio à tona, a CBF vergonhosamente teve que admitir que a taça que estava no cofre era a réplica e a original estava exposta. A verdadeira taça Jules Rimet fora realmente roubada e era questão de tempo até a polícia recuperá-la ou que ela fosse derretida.
Enquanto a polícia batia cabeça pra chegar a alguma pista sobre o roubo, entrava na jogada Juan Carlos Hernandez, um argentino que era ourives e trabalhava no Rio de Janeiro derretendo ouro de origens duvidosas. Dada a rivalidade entre Brasil e Argentina no futebol, nada mais irônico que a Jules Rimet fosse derretida por um argentino. Mas o jogo começou a virar para a polícia brasileira quando um certo Antônio Setta procurou as autoridades para denunciar Peralta como o autor do roubo. De fato, Peralta tinha procurado Setta para participar, e este se negou porque, mesmo sendo um ladrão profissional, não tinha coragem de roubar a taça do tricampeonato, achava a ideia um absurdo! Portanto fez a denúncia e Peralta foi preso em 25 de janeiro de 1984. Uma vez preso, e segundo ele pressionado sob violência pela polícia, acabou abrindo o bico e entregou Bigode, Barbudo e o argentino Hernandez.
Bigode e Barbudo foram presos, mas não por muito tempo, assim como Peralta, pelo simples fato de falta de provas. Não havia quantias razoáveis de dinheiro com nenhum deles que sugerisse a venda da taça e, pra piorar, eles alegaram que confessaram o roubo porque estavam sendo torturados pelos policiais. Puderam, então, aguardar o julgamento em liberdade.
Foi então que a polícia civil resolve fazer uma batida no escritório de Hernandez, no centro do Rio de Janeiro. Lá apreendem cinco barras de ouro, que deveriam ser pesadas para ver se batia com o peso da taça. No momento da batida, Hernandez não estava presente. Apareceu na polícia no dia seguinte jurando inocência e exigindo ter de volta suas barras de ouro. Hernandez não foi preso, mas enquanto a investigação se desenrolava, o ouro ficou apreendido. Oito meses depois, a polícia estava sem provas e se viu obrigada a encerrar o caso, dado como inconclusivo. Foi quando o ouro de Hernandez foi liberado. Porém, quando ele foi lá buscar, as 5 barras de ouro foram trocadas por barras de latão, que imitam ouro, mas não tem valor nenhum. E o ouro mesmo sumiu!
Em 1988 aconteceu o julgamento de Peralta, Barbudo, Bigode e Hernandez. Os três primeiros foram condenados a 9 anos de prisão pelo roubo da taça, e Hernandez condenado a 3 anos por derretê-la, mas ninguém cumpriu a pena.
Peralta e Bigode fugiram, Barbudo conseguiu apelar da sentença e cumpriu a pena em liberdade. Hernandez fugiu do país. Peralta e Bigode foram localizados pela polícia anos depois e cumpriram parte da sentença. Já Hernandez foi detido em 1998 em São Paulo com sete quilos de cocaína e ficou preso por tráfico de drogas até 2005.
O roubo da taça Jules Rimet é um retrato fiel do Brasil. Tem uma história inacreditavelmente pitoresca, cheia de absurdos, desencontros, corrupção, descompromisso com a verdade e uma incômoda incerteza que perdura até hoje. A promessa que dizia que o Brasil é o país do futuro nunca foi desmentida, mas continua perdida, assim como o destino da taça Jules Rimet, que representava um Brasil altivo e vitorioso.
HOJE EU RECOMENDO
Filme: O Roubo da Taça
Direção: Caito Ortiz
Ano de lançamento: 2016
Um filme divertidíssimo e, claro, bem romantizado, sobre o roubo da Jules Rimet. Só pelas atuações do Paulo Tiefenthaler e da Taís Araújo, já é um filme que vale muito a pena ser visto.