As trincheiras arquitetônicas discutidas por Austerlitz levaram Cavalcanti de volta aos anos 1984, quando chegou à Alemanha Oriental, ou República Democrática Alemã, comunista, para estudar germanística na Universidade de Leipzig. A escritora e tradutora brasileira permaneceu naquele país por seis anos, tempo suficiente para testemunhar o poderio do Muro de Berlim, construído em 1961, e de outras fortificações que separaram as duas Alemanhas, até a reabertura das fronteiras em 1989.
Cavalcanti menciona no seu “autoensaio”, que é como a autora se refere a seu livro, uma frase de efeito repetida inúmeras vezes naqueles anos pelos moradores da Alemanha Oriental: “Se o Muro de Berlim existe para nos proteger do capitalismo, por que então os guardas alemães-orientais apontam armas para os cidadãos de seu país, e não para os inimigos imperialistas?”. Essa pergunta se soma a outras, para as quais todos sabiam a resposta, mas não podiam ou não conseguiam verbalizar.
As memórias de Cavalcanti dialogam e se fundem com referências vindas da literatura, como Elias Canetti, Paul Celan e Ingeborg Bachmann, esses dois últimos traduzidos por ela para o português, e com referências vindas do cinema, como A Vida dos Outros (Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2007), de Florian Henckel von Donnersmarck, de onde vem o título de seu livro, o qual parece fazer parte do filme.
A Vida dos Outros gira em torno da política de espionagem da antiga Alemanha Oriental, onde, como diz Cavalcanti, “estima-se que havia um espião para cada 6,5 pessoas”. O livro de Cavalcanti, cujo enredo segura o leitor do início ao fim como um bom thriller, tem como mote um recente pedido de documentação a seu respeito (se houvesse alguma) ao Stasi (como ficou conhecida a Segurança de Estado da Alemanha Oriental). Enquanto aguardamos a resposta do governo alemão ao pedido de Cavalcanti, acompanhamos a vida da estudante brasileira no Leste Europeu nos anos que antecederam a queda do Muro de Berlim: as cartas enviadas à mãe que, possivelmente, foram interceptadas pelo governo; os conhecidos que fugiam para a Alemanha Ocidental pela Hungria; as manifestações públicas cada vez maiores contra o regime, as quais não eram informadas pela mídia local, mas que foram fotografadas pela autora. Aliás, algumas dessas fotografias integram o livro e enriquecem o seu entrecho.
Entre as muitas histórias narradas por Cavalcanti, chama a atenção uma ida para Praga com amigos, onde se deleitaram nos parques da cidade sem saber que o país estava contaminado pela radiação, após o acidente nuclear em Chernobyl, do qual eles ainda não haviam tomado conhecimento.
Cavalcanti conta ainda como ela revisitou depois Praga, na companhia de Frido e Jindrich, netos de Thomas Mann e Heinrich Mann respectivamente.
Ler o livro de Cavalcanti me levou de volta à adolescência, quando eu passava pelo menos dois meses por ano na Alemanha Ocidental. A diferença entre o Brasil e aquele país era imensa; não falo da língua nem da cultura, mas do acesso a bens de consumo, à informação e à tecnologia. Em 1987, numa dessas minhas idas à Alemanha, o Instituto Goethe, onde estudava, fez uma excursão para a República Democrática Alemã; foi um choque chegar a uma outra Alemanha, um país congelado nos anos 1950, sob um regime autoritário rígido em que todos eram constantemente observados e as fronteiras eram extremamente vigiadas. Guardo na lembrança esses quatro dias angustiantes, mas essa é uma outra história.
A Vida dos Outros e a Minha também discute o autoritarismo de direita do Brasil, terra natal da autora, contrapondo-o ao autoritarismo de esquerda da Alemanha Oriental, onde ela morou. A conclusão de Claudia Cavalcanti é que o autoritarismo “não deixa muita margem para interpretação, pelo menos para justificá-lo”.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Comentários estão fechados.