Abrigos recebem 70% mais famílias sem-teto

O ajudante geral Ismael dos Santos, de 24 anos, a mulher Juliane Stefany, de 29, e o filho Victor, de apenas sete meses, vivem desde fevereiro em uma unidade de acolhimento no centro de São Paulo. A antiga casa da família – alugada, em São Sebastião, no litoral norte paulista – ficou para trás após perderem o sustento na pandemia. “A gente trabalhava na praia, em quiosque. A praia fechou e ficamos sem opção”, conta o pai. “Estávamos praticamente passando fome.”

Avistar famílias inteiras vivendo nas ruas de São Paulo se torna cada vez mais comum e essa percepção se reflete no fluxo de acolhidas em abrigos. Em um ano, o total de pessoas atendidas pelos centros da Prefeitura para famílias cresceu 70%, acelerado pelo desemprego e despejos. Em maio de 2020, em média, ao menos 204 pessoas por dia eram atendidas pelos Centros de Acolhimento Especial (CAEs) para famílias. Em maio de 2021, foi para 348 (adultos e crianças), conforme a Secretaria Municipal de Assistência Social.

A cidade tem 864 vagas especiais para famílias, em oito unidades. A demanda por abrigo é ainda maior no inverno – na última terça, a capital registrou – 2,3°C no extremo sul, recorde em 17 anos. Há ainda unidades exclusivas para mães e bebês, que tiveram alta de 58% – ante alta de 11% dos acolhimentos em geral.

Há cerca de um mês, Santos conseguiu trabalho em um depósito, perto do CAE onde tem ficado, no centro. Todo dia, pela manhã, leva o bebê para a creche, a poucas quadras do endereço. “Meu filho sai às quatro horas da tarde, dificilmente a mãe dele vai conseguir emprego que sai às quatro para buscar ele.”

O desemprego também preocupa Ana (nome fictício), que mora no mesmo centro com a filha e dois netos. Recém-chegada do interior de Minas, ela tem dificuldades para a recolocação. “Aqui em São Paulo tem muito preconceito. Se você mora em abrigo, não te dão emprego”, relata. “É sempre melhor ter sua própria casa. Mas entre morar na rua, aqui é melhor. Tem muita gente que não dá valor. Tem o quarto e o banheiro da gente, a televisão.” Nos abrigos especiais, é possível ficar por período mais amplo e usar o espaço para refeições.

Trabalho

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os trabalhadores desocupados no País já somam 14,7 milhões e mais quase 6 milhões são desalentados – desistiram de procurar vaga.

A busca diária por sustento faz parte da rotina de André de Oliveira, de 35 anos. Junto aos filhos, Arthur, de quatro anos, e Denise, de dois, o antigo pedreiro mora há cinco meses em um CAE no centro. “Todo dia levo para escola e depois procuro algo pra fazer, um bico. Se não arrumo, tento pegar latinha ou papelão”, conta. “De vez em quando encontro, mas tem dia que não. Ontem, era para trabalhar com um rapaz aqui perto de ajudante, mas não deu. Tinha de pegar eles de tarde na escola”, conta.

Segundo Oliveira, a ex-mulher é quem recebe o auxílio emergencial. “Ela tira para comprar drogas e largou a gente já tem quase um ano.” Do Jaguaré, zona oeste da capital, a família não conseguiu pagar o aluguel e o encaminhamento ao abrigo foi por meio de assistentes sociais acionados pela escola da filha. “Expliquei a situação e perguntaram se eu queria ficar em um abrigo. Disse: ‘se meus filhos puderem ficar, fico. Senão, eu não fico.'”

No 1º trimestre de 2021, segundo dados do Tribunal de Justiça paulista, as ações de despejo no Estado aumentaram 79%. Congresso e Assembleia aprovaram leis com veto temporário a despejos, mas ainda falta a sanção dos Executivos. O economista Sergio Firpo, do Insper, diz que a ideia pode ser boa, mas vem com atraso. “Será uma medida de fôlego curto e que vem tardiamente.”

Perfil

Homens adultos e sozinhos predominavam entre os moradores de rua no último censo, de 2019. Eram 24.344 pessoas nas ruas de São Paulo. O próximo censo seria só em 2023, mas foi adiantado para este ano. Serão feitas duas pesquisas, uma de crianças e adolescentes e outra de adultos. “A percepção que temos hoje andando pela cidade é de que existe um número maior de famílias na rua. Que, muito provavelmente, perderam suas residências, deixaram de conseguir pagar o aluguel. A gente notou isso já no 2º semestre do ano passado”, disse a secretária municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo, Berenice Giannella, ao Estadão.

Coordenador do Movimento Nacional da População de Rua, Darcy Costa também vê essa alta. “O governo não subsidia o suficiente e não tem políticas em escala de acolhimento, aluguel social e habitação.”

A ampliação dos CAEs para famílias está no horizonte da Prefeitura. Em dezembro, o espaço do antigo hotel Art-Palácio, na República, foi transformado em um centro com 70 suítes e capacidade para atender até 260 pessoas. O mesmo ocorreu com o antigo hotel Natal, em Santa Cecília O espaço agora acomoda até 110 pessoas em 55 suítes. A previsão é de novos lançamentos em breve. Hoje, os oitos CAEs estão na região central e nas Subprefeituras da Mooca, Ermelino Matarazzo, Penha (na zona leste) e Santana (norte).

Segundo o padre Julio Lancelloti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua, nem sempre é fácil para famílias serem acolhidas nos centros especiais. “Eu estava com uma família agora, com quatro crianças, uma de um mês. Tive de pressionar muito a Prefeitura para conseguir”, disse, na semana passada. “Se tem tanto lugar sobrando, em algum lugar fica esse gargalo.”

Para ele, é necessário preservar a autonomia das famílias. “Eles cozinham. E vão para um lugar onde alguém faz comida para eles”, exemplifica. “Eles têm de organizar o próprio espaço. No entanto, esses lugares institucionais têm o pessoal que faz limpeza. Você não cria autonomia, a pessoa não tem responsabilidade. É tirada dela a possibilidade de ser a construtora da vida dela.”

Em nota, a Prefeitura disse que as regras dos serviços de acolhimento são decididas em assembleias na presença dos próprios conviventes. “Horários de alimentação, uso das salas de TV e informática e os banhos ficam definidos para que se mantenha a ordem e a boa convivência no local.” Ainda conforme o Município, os acolhidos assinam termo em que se comprometem a respeitar os funcionários e vizinhos. Em caso de descumprimento, pode haver restrições de uso do espaço.

Fora dos abrigos, também se vê o drama das famílias sem-teto. Quase todo dia, Ana Paula da Silva, de 36 anos, vai com os filhos Renata Vitória, de nove anos, e Santiago Luiz, de um, a uma quadra no Glicério, onde a Associação Rede Rua entrega marmitas na hora do almoço. “Pego três. O bebê quase não come, então a gente guarda o resto dele e come na janta”, conta. “Venho pegar marmita porque é uma ajuda boa. E tem mistura, porque senão a gente não come um pedaço de carne.”

Desempregada, sonha em comprar uma carroça para melhorar a renda. “Trabalho na rua, cato latinha, ferro, tudo que achar, vou pegando para poder complementar a renda.” Em situação de rua há sete anos, ela já morou na Praça da Sé, agora, vive em uma ocupação na região. “Cada um tem seu cantinho, pega uma madeira e coloca. É igual à rua, a diferença é que tem teto.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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