Mary Olivetti brilha com remix de Rita Lee

Talvez seja mesmo mais fácil criar uma canção do que interferir em algo pronto, acabado e reforçado pelos últimos 40 anos, todos os dias, em plataformas digitais e emissoras de rádio. O que existe não é mais uma canção, mas ideias, lembranças e sensações de um tempo, e interferir nesse fluxo para se projetar com alguma força sem quebrar as curvas emocionais da composição levando-a para um lugar ao qual ela não pertence vira um desafio. É preciso ser novo e velho, fresco e nostálgico, insolente e reverencial. Mais difícil do que compor é recompor.
Nada disso estava escrito no envelope que Roberto de Carvalho e Rita Lee enviaram à casa de Mary Olivetti em plena pandemia. Eles queriam que ela participasse de um projeto de remix de músicas que estiveram nos muitos picos da carreira do casal, capitaneado pelo filho, João Lee. Coisa de gente grande e, conflituosamente à ideia de existência da própria Rita Lee, de muitos homens e poucas mulheres. Gui Boratto ficou com Mutante, encurtando tempos e suprimindo vozes; Dubdogz & Watzgood amplificaram os poderes rítmicos de Mania de Você; DJ Marky levou os sons de um bolero chamado Caso Sério ao extremo das pistas caribenhas; e The Reflex criou suspenses seguidos de êxtase com Lança Perfume. Vírus do Amor ficou para Krystal Klear; Doce Vampiro, com Inner Soto; Mania de Você foi para Harry Romero; Saúde, para Tropkillaz; Atlântida, para Renato Cohen; e Nem Luxo, Nem Lixo, para Chemical Surf. A Mary, única mulher escolhida nesta primeira fase do projeto, que será seguido por mais dois volumes com mais remixes, coube reabrir as pistas de Cor de Rosa Choque para fazer algo, no mínimo, tão bom quanto.
Há mais de 20 anos à frente de pistas de todo tamanho, de boates da zona sul do Rio às tendas eletrônicas do Rock in Rio de 2011 e 2015 e do gigantesco Tomorrowland, de 2016, Mary Olivetti está na outra ponta de um conceito de produção iniciado por seu pai, Lincoln Olivetti, a partir do final dos anos 1970.
Lá atrás, Lincoln tornou o produtor um coautor pensando arranjos a partir do “som dos anos 80”, um filtro criado por ele com teclas e efeitos de estúdio pelo qual todo artista que buscava os novos tempos passava – e lá estavam, sem sectarismos, tanto Gal Costa, Gilberto Gil, Tim Maia, Jorge Ben, a própria Rita, Roberto Carlos, Caetano Veloso e Marcos Valle quanto Xuxa, Biafra e Sidney Magal. Aqui, Mary Olivetti e sua geração usam o que acumularam em anos de produção – ela tem ainda os ouvidos da mãe cantora, Claudia Olivetti, a colocando nas energias da música brasileira quando tudo ameaça escapar – e respiram fundo.
“O meu primeiro pensamento foi fazer algo que estivesse à altura dos maiores DJs do Brasil, eu tinha que acompanhá-los”, conta. “Sendo assim, imaginei levar a versão de Cor de Rosa Choque para a pista, mas qual pista?” A pergunta definiria tudo. “Uma pista para duas mil pessoas ou para cem pessoas?” Mary colocou a música de Rita para tocar e fechou os olhos até visualizar a pista perfeita. “Era a de 100 pessoas”. Depois, ao mesmo tempo em que tocava Cor de Rosa Choque, colocou faixas da ‘old soul’ de Marvin Gaye, da retro soul do Tuxedo e da neo soul de alguns grupos para sentir o encaixe não do tempo, mas das vibrações. E lá estava o espírito que procurava.
Mary começou as incisões. A voz de Rita, as linhas de percussão e os sints originais de Eduardo Souto Neto eram pontos delicados. “Eu não podia tirá-los.” Começaram a entrar as novas linhas de bateria e o novo corpo passou a tomar forma, dentro de um andamento mais acelerado. O baixo de Alberto Continentino trouxe um groove bem mais movimentado do que o original, tocado por um mistério. A ficha técnica do disco em que a música foi lançada, Rita Lee e Roberto de Carvalho, de 1982, só não traz o nome do baixista. Cor de Rosa Choque foi feita em 1979 para o programa TV Mulher, da Globo, a pedido do diretor Newton Travesso, mas só lançada em disco no álbum de 82. “Deve ser o baixista do Roupa Nova”, diz Roberto de Carvalho. “Só pode, gravamos todo o álbum com os músicos do Roupa.”
Era só uma ligação para tirar a dúvida, mas Roberto fala mais. “A faixa que Mary produziu ficou umas 50 vezes melhor do que a gravação original.” Ele não parece brincar. “Nunca gostei muito do resultado original, a mixagem é fraca e a voz da Rita soa baixa. Agora, ela aparece bem à frente.”
Mary, ainda sobre seu processo de reconstrução, chamou o tecladista Rodrigo Tavares para dar forma a suas ideias com um Rhodes, um piano elétrico Wurlitzer e um acústico, e no fim, contra a corrente mais densa do eletrônico, que em geral despreza guitarristas, trouxe Paulinho Guitarra, que só com Tim Maia ficou 15 anos. “Eu fecho os olhos e vejo o mar. A guitarra dele deu um brilho inigualável.” Cor de Rosa Choque abre um caminho novo e curioso a Mary Olivetti. Se o seu pai tornou-se conhecido por eletrificar uma geração acústica e convencê-la a ousar, sua house music de Cor de Rosa Choque coloca a música eletrônica nas mãos dos músicos sendo velha e nova, fresca e nostálgica, insolente e reverencial.
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