Máscara ativista cai em descrédito

É, não está fácil para ninguém – nem para os mais marmóreos vultos do ativismo. Como a americana Naomi Wolf, uma das mais influentes feministas contemporâneas, que foi banida do Twitter. E por um motivo de dar vergonha em Donald Trump (ele próprio já enxotado daquela rede social) – ou em seus destrambelhados epígonos sul-americanos.
Naomi se instalou no panteão feminista, em 1990, com a publicação de O Mito da Beleza, a partir daí, figurinha fácil na bibliografia acadêmica dos “Estudos Femininos”. Naomi inspirou desde as Vingadoras Lésbicas às organizações pró-aborto, das marchas Take Back the Night ao chamado “feminismo pró-sexo”.
O Mito da Beleza, no currículo do ensino médio norte-americano, espinafrava “o lucro e o patriarcado” por fazerem as mulheres se angustiarem sobre a respectiva aparência. Os títulos dos capítulos eram granadas verbais: Trabalho, Sexo, Fome. E uma ilustração sugestiva simbolizava o mito da beleza: a Donzela de Ferro, instrumento medieval de tortura decorado por fora com a imagem sorridente de uma jovem. A metáfora assinalava o modo como imagens de beldades mascaram na sociedade de consumo o sofrimento a que as mulheres se submetem pela quimera da beleza.
Como se não bastasse, a própria autora, então com 28 anos, era linda de morrer, inviabilizando o proverbial impropério misógino (pré-#MeToo) de que as feministas não passam de barangas mal-amadas. Com um visual de parar o trânsito, Naomi podia estapear a indústria da beleza com uma credibilidade inexpugnável. E não era monástica: rejeitando a austeridade espartana da segunda onda feminista, ajudava a enunciar os desejos de uma nova geração: “Glamour é a demonstração da capacidade humana de encantar – e não tóxica em si mesma”.
Botemos os pingos nos is. A história feminista é dividida em três ondas. A primeira, do fim do século 19 ao início do 20, lutou sobretudo pelos votos das mulheres, com as famosas suffragettes, e o direito de propriedade e o de herança iguais. A segunda onda, entre 1960 e 1980, postulou o aborto e anticoncepcionais. Com o slogan “O pessoal é político”, tratava-se de vincular o individual ao institucional. A munição veio de O Segundo Sexo (1959), de Simone de Beauvoir, e A Mística Feminina (1963), de Betty Friedan. Peitava-se (inclusive queimando-se sutiãs) a noção de que a maternidade e o lar eram o lugar geométrico da vida da mulher. A terceira onda despontou em 1990, gerada na academia e nas chamadas teorias pós-modernas, incluindo as ideologias de gênero.
Segundo esse prisma, a vida das mulheres é interseccional (termo criado por Kimberlé Crenshaw, da Universidade de Columbia) – enredada na raça, etnia, classe, religião, gênero, etc. Pois todo discurso é poder, e toda realidade é subjetiva.
Enquanto isso, a carreira de Naomi Wolf, que já fora conselheira do vice-presidente Al Gore – escorregava e depois desembestava ladeira abaixo. Em 2012, ela publicou Vagina: Uma Nova Biografia – uma obra que as próprias feministas consideraram um embaraçoso mico: como resmungou Liza Featherstone na New Republic: “Quanto menos se falar nesse livro, melhor”. Já Outrages, lançado em 2019, se apoia num erro histórico tão crasso que o próprio editor recolheu a edição.
Desgraça pouca é bobagem e até O Mito da Beleza pisou na bola, quando ficou claro que as estatísticas nele apresentadas eram pra lá de duvidosas. Por exemplo, os dados sobre distúrbios alimentares e anorexia estavam errados em dois terços das citações. Acadêmicos criaram até o acrônimo Wolf para descrever a incúria da abordagem: Wolf’s Overdo and Lie Factor (Fator Wolf de Mentira e Exagero). Como observa Liza Featherstone, “Wolf relata um genocídio que nunca aconteceu – lembrando a histeria do QAnon sobre crianças por pedófilos”.
Com a pandemia e via Twitter, Wolf pirou na batatinha. Primeiro, jurou que, de acordo com um funcionário da Apple (que teria assistido a uma “demonstração ultrassecreta”), a tecnologia das vacinas tem a ver com viagens no tempo (mais provavelmente com viagens na maionese, digo eu). Depois, exigiu que a urina e as fezes das pessoas imunizadas sejam separadas no esgoto público, até que o efeito “contaminante” na água potável seja estudado. “Ninguém fala do perigo que os vacinados representam para os não vacinados!”, rosnou a lupina Wolf.
E aceitou protagonizar um evento antivax em pleno “Juneteenth”, feriado nacional nos EUA que, desde 1866, comemora a emancipação dos afro-americanos escravizados. Segundo Naomi, os organizadores da manifestação escolheram essa data para “mostrar que vacinas são escravidão”.
Tal postura levou o Twitter a banir Naomi Wolf por “semear desinformação”. O poder tentacular das chamadas Big Techs (as corporações gigantes do reino digital) e a liberdade de expressão são um dos temas mais acalorados da atualidade: a Amazon filtra os livros que expõe em seu site, o Google manipula as buscas, etc. Por outro lado, quantas mortes causaram as fake news que infestam a ágora eletrônica, desde o “chip alienígena” à metamorfose jacaré, confundindo milhões de pessoas ingênuas ou distraídas?
O besteirol de Wolf ditou até uma eventual reavaliação de um episódio lúgubre. Em 2003, ela publicou um texto alegando que 20 anos antes o professor Harold Bloom, do qual era aluna em Yale, tinha passado a mão na coxa dela, durante um jantar na casa dele. E só não o denunciara porque não tivera coragem. A universidade respondeu que “o abuso é uma afronta contrária aos valores desta instituição”. Bloom, o crítico literário mais proeminente das últimas décadas, morreu há um ano e meio sem dar um pio. Em compensação, a também feminista, lésbica assumida e ex-aluna de Bloom, Camille Paglia, acusou Naomi de “caça às bruxas” e de “empurrar um septuagenário doente para um bate-boca do tipo “ela disse/ele disse”. O nível do barraco continuou caindo assustadoramente, com Paglia rugindo que Wolf “passa a vida inteira piscando os olhinhos, balançando os seios e cortejando os homens”. Já parecia mais a piscina do Gugu, só que com QI positivo.
Com a Interseccionalidade, este é um momento melindroso para o movimento feminista. Numa marcha no dia 8 de março em Paris, desfilaram separadas mulheres brancas, negras e trans. Até a violência masculina virou polêmica. A feminista negra Alison Phipps alega que “mulheres brancas privilegiadas transformam em arma seu trauma da violência masculina, pedindo mais polícia e sentenças mais longas, sem se preocupar que são negros que pagam o pato nas prisões”. Feministas brancas replicam que é absurdo chamar de racistas mulheres que exigem punição do estupro e do feminicídio, independentemente da cor da pele do criminoso.
Jovens feministas da França (dos pais do pós-modernismo Foucault, Derrida e Bourdieu), como Eugenie Bastié e Caroline Fourest, questionam a indulgência das ativistas ocidentais com as teocracias islâmicas (ignorando os casamentos impostos de adolescentes com homens muito mais velhos, a privação do estudo e a mutilação genital das meninas). Enquanto isso, o novo gabinete de Israel tem nove ministras (sem falar em um árabe).

No final de junho, a escritora nigeriana Chimamanda Adichie (autora de Sejamos Todos Feministas) postou em seu blog um texto inflamado. Era uma réplica a uma ex-aluna que a acusava de transfobia, se congratulava com a morte dos pais da autora durante a pandemia e pedia que ela fosse morta a facadas. Num tom patibular, Chimamanda conclui: “Já não somos seres humanos”. A conclusão era óbvia: hoje em dia, nós odiamos uns aos outros.
Quanto a Naomi Wolf, ela declarou ao Congresso dos EUA que um “eventual passaporte para vacinas é igual ao início de inúmeros genocídios”. Ainda no Twitter, afirmou que as vacinas são “uma plataforma que permite receber uploads”. Ou seja: se virarmos jacarés, não choremos lágrimas de crocodilo.
Acrescentou que os EUA estão contrabandeando o vírus ebola da África para usá-lo no país. E que Edward Snowden, o analista da CIA e da NSA, que divulgou segredos militares dos Estados Unidos, é na verdade um agente duplo da Casa Branca.
Segundo alguns, um corolário perverso das teorias pós-modernas foi a rejeição da ciência e da razão iluminista. Esse obscurantismo fundamenta tanto o negacionismo antivacina como o questionamento do aquecimento global e a fé no terraplanismo. Pelo andar da carruagem, Naomi Wolf e farinhas do mesmo saco continuarão teimando que covid é para frouxos, e que cloroquina é uma mistura de emplastro Brás Cubas com joelhaço. Bem, todos temos direito às nossas próprias opiniões, mas não aos nossos próprios fatos.

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