Adaptada por Glória Perez, baseada no romance homônimo do escritor e jornalista mineiro Roberto Drummond (1933-2002), e dirigida por Wolf Maya, a minissérie de 32 capítulos conta a história de Hilda (Ana Paula Arósio), uma menina da tradicional família mineira dos anos 1950 que, no dia do seu casamento, foge para a zona de meretrício da cidade, onde vira uma das prostitutas mais desejadas do lugar.
Era no Maravilhoso Hotel que Hilda e outros personagens, como o travesti Cintura Fina (Matheus Nachtergaele) e as prostitutas Maria Tomba Homem (Rosi Campos) e Leonor (Paloma Duarte), respiravam ares de liberdade em um Brasil em que as ligas de senhoras tentavam ditar as regras da boa moral e o governo caçava comunistas.
A trama é narrada pelas memórias de Roberto Drummond, vivido pelo ator Danton Mello, um jornalista e militante político. Ele é amigo de Malthus (Rodrigo Santoro), um jovem frei que se envolve com Hilda e vive o dilema entre viver o amor e continuar na vida religiosa, e Aramel, o Belo (Thiago Lacerda), que detestava política e sonhava em ser um astro de Hollywood.
Com outros nomes de peso no elenco, como Paulo Autran (o severo Padre Nelson) e Mário Lago (o boêmio Olavo), Hilda Furacão foi lançada em DVD em 2002 e reprisada pelo canal Viva por duas vezes.
Em entrevista por e-mail ao Estadão, a autora Glória Perez fala sobre a escolha de Ana Paula Arósio como protagonista – à época, a atriz era contratada do SBT -, das impressões de Drummond sobre a adaptação, entre outras histórias de bastidores.
Você postou em suas redes sociais que a TV Globo te pediu para fazer a adaptação do livro, mas você estava comprometida com a novela Barriga de Aluguel. Anos depois, enfim, você adaptou a obra. Conta como isso aconteceu.
Em 1991, Mário Lúcio (Vaz, diretor da Central Globo de Produção à época) me chamou à sala dele e entregou o livro para que eu lesse e fizesse a minissérie. Era mineiro, amigo do Roberto Drummond, e seu faro dizia que tínhamos ali uma ótima história. Não tive tempo de abrir o livro. Dali saí para uma reunião com Geraldinho Carneiro (roteirista), que estava encarregado do projeto Você Decide, e eu deveria ser incluída nele. No meio da reunião, fui chamada de volta à sala do Mário: tinham decidido fazer Barriga de Aluguel. Hilda correu pelas mãos de muitos autores até voltar pra mim em 1997. Por isso, eu e Roberto brincávamos muito com a frase que escrevi para a cartomante que lê a sorte de Hilda: “o que Deus risca ninguém rabisca”.
O que o Roberto Drummond, que, aliás, é o narrador-personagem do livro e que você levou para a série, achou da adaptação?
Ele amou e disse isso em todas as entrevistas. Nos demos muito bem, ficamos amigos. De início ele estava preocupado em não se reconhecer na série, porque eu lhe disse que muita coisa teria de mudar para que a história fosse contada em outro formato. E não o deixei ver essa adaptação nem ler os capítulos. Mas lhe prometi que ele se reconheceria na série, que o sabor de sua história e de suas personagens estaria lá. Teve um fato engraçado. No livro, Hilda já começa na zona boêmia. Na série, não. Liguei para ele e disse: Roberto, vou te contar como termina o primeiro capítulo “Hilda entrando na zona boêmia vestida de noiva, ao som da Ave Maria”. Foi aquele silêncio e ele bateu o telefone. Uns cinco minutos depois ligou de novo, emocionado: “Glória, sou eu! Essa cena sou eu! Me reconheço nela”.
Hilda virou meio que um mito na época, mexeu com a curiosidade das pessoas. Mas ela não existiu de fato, não? Aliás, a minissérie tem esse mistério e curiosidade de quais personagens existiram ou não…
Hilda é ao mesmo tempo um livro de memórias. As personagens, tipos, pessoas que ele conheceu – algumas com os nomes reais, outras não. Quanto à Hilda, ela é uma síntese das mulheres que povoaram a fantasia dos adolescentes da época. Um dia falei para o Roberto: vamos dizer que ela existiu, vai ser ótimo. Ele gostou da ideia e a gente se divertiu muito com a quantidade de Hildas e amantes de Hilda que começaram a aparecer.
A forma como a Ana Paula Arósio participou da minissérie foi curiosa. Ela ainda era contratada pelo SBT e foi cedida para a minissérie. O que você pode contar sobre isso? A Ana foi uma escolha sua?
Ana foi uma sacada do Wolf. Achei perfeita, mas havia esse empecilho: ela era do SBT, estava comprometida lá. Mesmo assim resolvemos falar com o Boni (então diretor geral da TV Globo). E falamos, falamos… Boni embarcou na nossa e conseguiu o acerto. Desses bastidores não participamos, só ele para contar como convenceu o Silvio (Santos, dono do SBT). A vinda da Ana Paula foi um milagre do Boni.
A Ana já havia feito novelas no SBT, mas foi em Hilda que ela se projetou e se mostrou uma atriz poderosa. Você se surpreendeu pela forma como ela abraçou a personagem?
Quando ela veio conversar (comigo), eu senti que era Hilda. Ela tinha a força, a garra da personagem. A partir dali não conseguiria pensar em mais ninguém para o papel.
Você já tinha trabalhado com o Rodrigo Santoro em Explode Coração. Como foi a escolha dele para ser o frei Malthus?
Em Explode Coração, ele fazia um personagem secundário, mas forte na trama. E já se podia enxergar o tamanho de seu talento. Apostamos nele sem medo de ser feliz.
Os personagens Maria Tomba Homem e Cintura Fina trouxeram essa questão de gênero, de maneira não caricata, em uma época em que essa discussão era incipiente, ou quase inexistente. E foram muito bem aceitos. Gostaria que você falasse sobre eles.
Esses foram personagens reais. A única preocupação foi fazê-los humanos, e quando você leva a personagem para a dimensão do humano, você anula a possibilidade da caricatura.
O elenco ainda tinha Paulo Autran – uma das poucas participações dele na TV e a última em que ele fez de forma completa. Como foi convencê-lo?
Não tivemos trabalho. Ele gostou da personagem. Conheceu padres como o padre Nelson, como eu também conheci. E se divertiu muito fazendo-o.
Você contou com a participação de Mário Lago, que, além de um grande artista, também foi ativista político importante da época em que a minissérie se passava – além de ter sido um boêmio. Vocês conversaram sobre esses temas?
Mário era muito amigo. Conversávamos muito, antes e depois de Hilda. Fizemos muitos trabalhos juntos. De um modo ou de outro, ele sempre passava pelos meus trabalhos. Alegre, bem-humorado, contava histórias ótimas da boemia e dos bastidores da militância política.
O PSD do Rio de Janeiro chegou a pedir a suspensão da minissérie na época. Como esse episódio foi contornado?
O partido alegou que estávamos num período em que, por lei, não se podia falar de política em TV. O fato não rendeu, era uma bobagem. A minissérie era de época, retratava uma realidade bem diferente da que tínhamos então. E as curiosidades sobre a militância juvenil, mostradas ali, são memórias de quem as viveu. Além do Roberto, o Mário Lago também me contou muitas histórias sobre como funcionavam esses grupos. Até o Apolônio de Carvalho (militante comunista) eu entrevistei na época.
Uma parte não menos importante foi a música-tema de abertura, Resposta ao Tempo, cantada por Nana Caymmi. Sei que ela não foi composta especialmente para a série, mas acabou fazendo parte dela de uma maneira muito especial – e se tornou um clássico da música brasileira. Como ela foi escolhida?
Mérito do Mariozinho Rocha (diretor musical da TV Globo à época). A música chegou a ele exatamente quando estávamos escolhendo a trilha. E vestia como uma luva a história de Hilda.
Você palpita na escolha da trilha de suas produções?
Ah, sim. Música é dramaturgia.
Hilda Furacão tem 32 capítulos. Amazônia tem 54. Uma minissérie grande. Talvez daria duas ou três temporadas das séries atuais, no modelo atual do streaming. Esse formato te atrai?
Me atrai e muito. Como me atraem as novelas. São desafios diferentes para quem gosta de contar histórias.
Desde o ano passado, o Globoplay vem disponibilizando o acervo de novelas em sua plataforma, para felicidade dos fãs de telenovela, que agora podem maratoná-las. O que pensa dessa forma de assistir às novelas?
É perfeito. Comecei num tempo em que os capítulos só viviam uma noite. Se você não assistisse ali, não assistiria mais. Para o telespectador era como ler um livro com algumas páginas arrancadas. Com o streaming, temos nossas obras ali, numa estante que pode ser revisitada sempre.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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