A portaria assinada nesta terça-feira não tem efeito retroativo e não livra o governo de questionamentos pela prática adotada com o orçamento de 2020. O Ministério Público junto ao TCU pede abertura de investigação para averiguar se o presidente Jair Bolsonaro cometeu crime de responsabilidade por ferir as normas orçamentárias.
Na ocasião, Bolsonaro considerou que a interferência do Congresso “contraria o interesse público” e favorece o “personalismo”, mesmo assim, ignorou seu veto e permitiu que um grupo de parlamentares decidisse o que fazer com os recursos, conforme revelou o Estadão. A maior parte dos recursos foi parar nas bases eleitorais dos aliados para financiar a compra de máquinas e tratores, muitos a preços acima da tabela de referência do governo, razão pela qual passou o esquema passou a ser chamado nas redes de sociais de “tratoraço”.
Até hoje, Bolsonaro e os ministros Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil) e Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) dizem que o esquema montado pelo governo para aumentar sua base de apoio no Congresso é uma “invenção” da imprensa porque, na sua versão, a decisão sobre a aplicação dos recursos de emenda de relator era do Congresso. A publicação da portaria, no entanto, mostra que o Planalto montou uma ofensiva para tentar “regularizar” a prática. O ato, contudo, não tem o poder de corrigir o que foi feito no ano passado.
Segundo uma fonte que participou das negociações, a portaria dá formalmente poder ao relator do Orçamento para definir quanto e onde serão aplicados os recursos das emendas de relator – que hoje somam R$ 18,5 bilhões, mas podem cair a R$ 17,2 bilhões devido a um corte proposto em acordo com o Congresso.
Diferentemente das emendas individuais e de bancada, previstas na Constituição e que têm valor definido e distribuição igualitária entre congressistas aliados e de oposição, ainda não se sabe quais parlamentares serão agraciados com o envio desses recursos a suas bases. A sociedade seguirá sem saber quem fez cada indicação.
“Estão regulamentando a ‘bandalha’ das emendas do relator-geral. E continuamos querendo saber: quais serão os critérios de seleção dos parlamentares contemplados? Como serão distribuídos os valores entre eles?”, critica o economista Gil Castello Branco, fundador da Associação Contas Abertas.
O economista Marcos Mendes, pesquisador do Insper e que já foi chefe da Assessoria Especial do Ministério da Fazenda, avalia que a portaria eleva o “grau de captura” do Orçamento pelo relator como representante dos interesses pulverizados do Congresso. “A portaria tenta contar uma história de que a coisa estava na lei, era regular, mas está instituindo e detalhando uma prática bastante negativa do ponto de vista da qualidade do gasto”, afirma.
Para ele, a própria emenda de relator como instrumento de destinação de recursos pode ser questionada, pois hoje a Constituição prevê seu uso apenas para erros e omissões no Orçamento. “Por que as emendas individual e de bancada foram tornadas obrigatórias por emenda constitucional e a emenda de relator foi instituída por lei ordinária e tornada obrigatória por portaria? Por que dois pesos e duas medidas? Eu acho que tem que ser emenda constitucional”, diz Mendes.
A portaria foi publicada hoje no Diário Oficial da União (DOU) e é assinada pelos ministros da Economia, Paulo Guedes, e da Secretaria de Governo, Flávia Arruda. Em um dos artigos, a portaria diz que “caso seja necessário obter informações adicionais quanto ao detalhamento da dotação orçamentária objeto deste título, poderá o ministro da pasta respectiva solicitá-las ao autor da emenda”. Na prática, o trecho dá permissão aos ministérios para pedir ao relator-geral do Orçamento, senador Marcio Bittar, a lista de municípios que serão destino final dos recursos, sacramentando as negociações já feitas entre governo e Parlamento.
O Ministério da Economia resistia ao dispositivo, mas, segundo apurou o Estadão/Broadcast, uma reunião técnica realizada na noite desta segunda-feira, 24, selou a redação final da portaria. Para atender à Economia, foi inserido um parágrafo para dizer que as informações enviadas pelo relator-geral “não serão consideradas vinculantes à execução das programações”. Isso significa que a indicação do relator não será o único fator necessário para a liberação do dinheiro: será preciso verificar se há impedimento de ordem técnica ou legal relacionado ao município beneficiado.
Técnicos ouvidos pela reportagem, porém, explicam que cada ministério terá uma portaria própria para estabelecer seus critérios técnicos. Na prática, o desenho pode ser já “moldado” para atender às demandas dos congressistas, contemplando a maior parte ou todos os municípios, explicou uma das fontes que acompanha as negociações.
Hoje, os maiores beneficiários das emendas de relator são os ministérios da Saúde (R$ 7,8 bilhões), do Desenvolvimento Regional (R$ 6 bilhões), Agricultura (R$ 1,7 bilhão), Cidadania (R$ 1,1 bilhão) e Educação (R$ 1 bilhão), segundo dados reunidos pela Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado. Todos eles poderão editar regras próprias e, se o município se encaixar nesses critérios, poderá ser contemplado com o dinheiro.
Em 2020, as emendas de relator somaram R$ 20 bilhões. Esse mecanismo, identificado pela sigla RP9, foi criado no governo Bolsonaro naquele ano. Conforme revelou o Estadão, a proposta partiu do ministro Luiz Eduardo Ramos, que assina a exposição de motivos do projeto aprovado pelo Congresso.
Ofícios a que o jornal teve acesso mostram que ao menos R$ 3 bilhões do Ministério do Desenvolvimento Regional foram parar nas mãos de um grupo de deputados e senadores. Nos documentos eles tratam a verba como “minha cota”, “recursos a mim destinados” e definem o que deve ser feito sem qualquer critério. Até mesmo o preço do que deve ser comprado. Sobre ter aprovado valores acima da tabela de referência, o ministério alega que sua cartilha de preços é “meramente ilustrativa”.
A ala política já havia tentado formalizar a concessão desse poder de indicação do destino final das emendas de relator na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2020 e 2021, mas o dispositivo foi vetado a pedido da Economia. O veto, depois, foi mantido pelo Congresso, daí os questionamentos sobre a legitimidade das indicações feitas pelos parlamentares em 2020.
No ano passado, a portaria que regulamentou a execução das emendas parlamentares não trouxe nenhuma especificação sobre as de relator, identificadas como RP9, que acabaram canalizando os recursos para o “orçamento secreto”. Em 2021, o governo tratou de preencher esse vácuo.
A medida, porém, tem sido criticada nos bastidores por técnicos que atuam no controle dos gastos do governo. Há dúvidas, por exemplo, sobre como se dará a repartição dos recursos, ou até mesmo a transparência das indicações.
No ano passado, parlamentares enviavam ofícios diretamente aos ministérios – parte desses documentos foi obtida pelo Estadão via Lei de Acesso à Informação (LAI). Com o novo mecanismo, o relator é quem repassará as informações aos órgãos do governo, sem ficar claro se os ofícios das indicações serão encaminhados, ou se ele elaborará uma lista sem identificar os “padrinhos” de cada ação.
No domingo, o Ministério da Economia havia informado ao Estadão/Broadcast, por meio de sua assessoria, que “quanto às emendas incluídas pelo relator-geral, não existe nenhum regramento constitucional ou legal que lhe atribua caráter impositivo, ao contrário das emendas individuais e de bancada estadual, às quais se atribui o caráter de execução obrigatória, conforme previsão constitucional”. A Segov não havia respondido.
O Estadão/Broadcast questionou novamente os dois ministérios sobre como se dará a divisão dos recursos e como será dada transparência a essas decisões. A Economia não respondeu diretamente às nove perguntas enviadas pela reportagem, mas encaminhou uma nota em que afirma que “a possibilidade de solicitar informações adicionais busca possibilitar que as diversas pastas, caso entendam necessário, possam demandar informações adicionais ao relator-geral, uma vez que essas programações foram incluídas ou acrescidas pelo relator-geral e podem ter valores diferentes do enviado na programação original”. A pasta também ressaltou que as informações “não são vinculantes” e que a responsabilidade de execução é de cada pasta. A Segov não respondeu até o momento.
Comentários estão fechados.