Em Minas Gerais, parlamentares estaduais repassarão a municípios, sem convênio, R$ 1,5 bilhão em recursos pagos pela mineradora Vale após a tragédia de Brumadinho. Em Santa Catarina, enquanto enfrentava um processo de impeachment, o governador Carlos Moisés (PSL) transformou todos os repasses de recursos do Estado para municípios em transferências especiais, modelo menos transparente e de difícil fiscalização.
Levantamento feito pelo Instituto Nacional de Orçamento Público (Inop) a pedido do Estadão/Broadcast mostra que foram promulgadas neste ano emendas criando “cheques em branco” em São Paulo, Alagoas e Amazonas. Em 2020, propostas semelhantes foram aprovadas em Mato Grosso, Roraima, Santa Catarina e Espírito Santo e, ainda em 2019, em Minas. No Rio Grande do Norte e no Piauí, as mudanças legislativas ainda estão em tramitação.
No governo Jair Bolsonaro, o Congresso aprovou, em 2019, uma Proposta de Emenda à Constituição que uniu situação e oposição e criou o mecanismo das transferências especiais. Antes da PEC, havia apenas transferências com finalidade definida, pela qual o Estado ou a prefeitura tem de apresentar, antes de receber o dinheiro, uma série de documentos, o que inclui objeto do programa, justificativa e plano de trabalho. Todo o processo é fiscalizado por órgãos de controle.
Com as transferências especiais, basta o beneficiário indicar uma conta bancária para receber o dinheiro. Como mostrou o Estadão/Broadcast, essas emendas foram usadas por 66% dos parlamentares federais neste ano, que enviaram recursos inclusive para parentes.
Deputados estaduais e governadores propuseram emendas para incluir nas Constituições estaduais as transferências especiais. Em muitos casos, o texto das propostas é idêntico ao conteúdo da que criou o modelo na Constituição Federal. Em Santa Catarina e em Alagoas, as propostas foram iniciativa dos próprios governadores.
Em São Paulo, as primeiras emendas “cheque em branco” começarão a ser pagas no ano que vem, com recursos da lei orçamentária de 2022. Se o mecanismo estivesse em vigor neste ano, deputados poderiam destinar até R$ 250 milhões a municípios de forma menos transparente. A reportagem apurou que o Tribunal de Contas do Estado deve dar um parecer sobre o tema até outubro, durante a elaboração do Orçamento de 2022.
‘Entraves’
“Tinha muito obstáculo e estamos simplesmente tirando os entraves burocráticos e passando diretamente. Você tem de partir do ponto de vista de que há lisura e honestidade até que se prove o contrário”, afirmou o deputado Campos Machado (Avante), um dos autores da PEC que criou as transferências especiais em São Paulo.
Minas foi além e criou um subtipo dessa modalidade. Depois de incluir na Constituição do Estado a possibilidade de os deputados estaduais usarem transferências especiais para enviar emendas, a Assembleia Legislativa aprovou, em julho, uma PEC para permitir também o envio a municípios, sem a necessidade de convênios e fiscalização, de parte da indenização paga pela Vale ao governo mineiro após a tragédia de Brumadinho.
Contrário à destinação do recurso sem objetivo definido, o governador Romeu Zema (Novo) negociou um projeto de lei que limitou a aplicação do dinheiro a 17 tipos diferentes, que vão de pavimentação até a construção de casas. A lei, no entanto, prevê que os recursos serão transferidos sem a apresentação de “quaisquer documentos ou da celebração de convênio, contrato, termo de parceria, acordo, ajuste ou instrumento congênere entre o Estado e o município”.
“O processo de convênio seria muito moroso e poderia ter uma discricionariedade política. Nossa ideia foi fazer um repasse simultâneo para todos os municípios para evitar algum nível de priorização política”, justificou o relator da PEC, André Quintão (PT). Segundo ele, será a maior transferência de recursos para municípios dos últimos 20 anos. O montante, R$ 1,5 bilhão, representa quase 80% do valor aprovado por todos os deputados federais e senadores em transferências especiais a Estados e municípios neste ano, que foi de R$ 1,9 bilhão.
Em nota, o governo de Minas disse que trabalhou em busca de uma solução “técnica e legal” que viabilizasse o repasse dos recursos com um modelo de prestação de contas. E ressaltou que houve definição de objetos para o uso do dinheiro mesmo sem a formalização de convênios.
Para o diretor do Inop, Renatho Melo, há um “efeito cascata” nos Estados, o que é preocupante por se tratar de um modelo questionado por órgãos de controle e pelo Ministério Público Federal. “As fragilidades são repassadas no efeito cascata, a falta de transparência e controle é elevada e isso desperta um alerta. Estamos caminhando para modelos que nos levam a abismos orçamentários.” Para ele, trata-se também de um facilitador para a corrupção que deve passar por um aprimoramento ou um novo regramento.
SC
Em Santa Catarina, a iniciativa de propor a criação da emenda “cheque em branco” foi do governador Carlos Moisés (PSL), na esteira da articulação para se livrar do impeachment. Ele encaminhou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), no ano passado, e já repassou R$ 421,5 milhões de julho de 2020 até agora. Este ano, após dois afastamentos, Moisés retomou a cadeira e propôs uma nova PEC ampliando o mecanismo para todas as transferências do Estado, incluindo, além das emendas parlamentares, os repasses diretos do Executivo.
A PEC do “fundo a fundo”, como foi chamada a segunda medida, foi aprovada em menos de um mês, contrariando alertas do Ministério Público de Contas do Estado e da Consultoria Legislativa da Assembleia, que se posicionaram contra a proposta. “Em Santa Catarina, aparentemente, isso tem uma justificativa. Dois processos de impeachment e há uma conta que precisa ser paga. Talvez esse mecanismo esteja na conta”, afirmou o procurador Diogo Roberto Ringenberg, do Ministério Público de Contas de Santa Catarina. “É praticamente impossível a fiscalização.”
A mudança concede um tratamento tributário diferenciado aos recursos, transformando-os em receitas não tributárias, o que pode tirar recursos da Saúde e da Educação, que têm gastos mínimos definidos de acordo com a arrecadação de impostos.
O secretário da Casa Civil do Estado, Eron Giordini, disse que o modelo foi proposto para agilizar o repasse dos municípios e negou o uso do mecanismo para comprar apoio político. Ele prometeu editar uma portaria para exigir dos municípios a indicação dos valores e um plano de trabalho detalhando a destinação do recurso no caso da segunda medida. Esse controle, porém, não será aplicado no caso das emendas parlamentares.
“O governador é municipalista e vejo muito mais como um incentivo a essa aproximação com os municípios, através de um processo de desburocratização. Não tem nenhuma relação política com o processo de impeachment, de afastamento ou de agrado ao Parlamento”, afirmou Giordini. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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