O título do filme é particularmente feliz, e define o personagem. Migliaccio foi um autêntico ator brasileiro, cepa híbrida de necessidade, improviso, dedicação e talento. O material do documentário é tirado de entrevistas com o autor, uma mais recente e outras mais antigas. Além delas, há o material de arquivo, filmes realizados e trechos de uma peça de teatro em que o personagem, já velho, dialoga com ninguém menos que…Deus. A obra se chama Confissões de um Senhor de Idade. Nela, realizando um balanço de vida, o “senhor de idade” Flávio Migliaccio faz cobranças ao Todo-poderoso. “Onde estava o Senhor quando ocorreram a Peste Negra, o Holocausto, a Guerra do Vietnã, o ataque às Torres Gêmeas…Onde estava quando chamaram o Dunga para dirigir a seleção brasileira?”
Esse toque de humor acompanha todo o filme. Um humor terno, delicado, triste às vezes. Migliaccio conta sua infância numa família paulistana pobre, de 11 irmãos, pai barbeiro. Lembra, de maneira despretensiosa, quando chegou ao teatro, no caso o mitológico Arena, de Augusto Boal. As fases de sua carreira vão se sucedendo de maneira simples, quase casual, sem qualquer afetação. A chegada ao Rio, a participação no Cinema Novo, o sucesso na Globo. A fama, o dinheiro. Depois o peso da fama, a necessidade de se sentir só. E, contradição, o peso do anonimato tão buscado, mas que o artista não mais suporta ao não ser reconhecido pelas pessoas na rua. Tudo isso é contado sem atropelos, num ritmo amigável, sem necessidade de esmagar o espectador sob uma pilha de informações.
A maneira como Migliaccio fala de si é toda particular. Nenhuma teoria sobre o ato de atuar, nenhuma pretensão, nenhuma sensação de pertencer a uma casta privilegiada. Parece apenas a trajetória de um brasileiro nascido pobre, que precisava ganhar a vida e foi sendo conduzido, pelo acaso da necessidade, à carreira artística. Modéstia total, comovente.
Sente-se falta, aqui e ali, de imagens que são pontos de luz na carreira de Migliaccio. Destacaria, por exemplo, a ausência dele em Boleiros, de Ugo Giorgetti, interpretando o melancólico ex-jogador que não reconhece no velho de agora o jovem que magnetizara multidões nos estádios como craque do Corinthians.
E, sobretudo, a ausência de imagens do primeiro filme por ele dirigido, Os Mendigos (1962). A explicação para a lacuna aparece nos créditos finais: “O filme Os Mendigos, com direção de Flávio Migliaccio e produção Satélite Filmes Ltda., é uma obra de grande importância para Flávio, mas não nos foi possível ter acesso ao filme, pois sua única fonte encontra-se fechada na Cinemateca Brasileira, onde não conseguimos nenhum contato para retirar e usar na obra sobre o Flávio”.
A tragédia política brasileira, no plano cultural simbolizada pelo descaso com uma das instituições mais importantes, a Cinemateca Brasileira, aparece assim na contraluz do ocaso de Migliaccio. Na carta deixada à família, o ator lamenta que a humanidade não tenha dado certo e que seus 85 anos de vida pareçam ter sido jogados fora num país como este.
No entanto, vista em retrospecto, como no documentário, sua trajetória parece feita de luz. Os trechos de filmes mostrados nos lembram da vocação cômica e da intensidade da interpretação dramática de Migliaccio. Uma emoção represada, expressa como a contragosto para melhor ressoar na sensibilidade do público. Migliaccio sabia ser divertido, como nos filmes infantis do Tio Maneco ou na série Shazan, Xerife & Cia., em parceria com Paulo José. Pensava, escrevia e desenhava. Era um ser de pura criação.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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