Kalil Duailibi
Existe uma constante discussão e uma preocupação crescente da comunidade médica a respeito dos elevados índices de automedicação em todo o país. E não somente em determinado tipo de medicamento, pois a questão é, infelizmente, muito abrangente.
Segundo dados de 2022 do Conselho Federal de Medicina, 77% da população faz uso de medicamentos sem indicação especializada. Além disso, números publicados pela Anvisa também assustam: 18% das mortes por envenenamento no Brasil podem ser atribuídas à automedicação e 23% dos casos de intoxicação de crianças estão ligados à ingestão acidental de medicamentos.
Sabe aquela conversa de “ter uma farmácia em casa”? Isso é muito perigoso, porque a população comum não conhece os princípios ativos – e nem tem a obrigação de conhecer, é para isso que servem os médicos – nem os tipos e subtipos de medicamentos, incluindo aqueles que podem ser viciantes, que pode ter “na sua farmacinha”. Muitos até sabem, mas ignoram o quão nocivos muitos deles podem ser.
Em 2019, uma pesquisa da Fiocruz mostrou que 4,4 milhões de brasileiros já fizeram uso ilegal (sem prescrição médica) de algum opiáceo, ou seja, 2,9% da nossa população. Número expressivo, se compararmos com dados sobre a experimentação de crack (0,9%) e cocaína (0,3%) no Brasil. Esse quadro revela um grande risco de vício em analgésicos – lembrando que opioides são aditivos mesmo com prescrição, daí o cuidado redobrado com o uso.
Há necessidades, sim, as mais diferentes, mas elas devem ser continuamente monitoradas por um especialista responsável. Mesmo assim, também segundo a Anvisa, a venda de analgésicos opioides com prescrição médica cresceu 465% nos seis últimos anos. É uso legal, mas não deixa de ser alarmante.
O nosso grande temor é que o Brasil venha a enfrentar uma “epidemia” de abuso de substâncias. E a pandemia, sabemos, não ajudou em nada neste sentido, pelo contrário. No final de 2021 a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) publicou uma nota destacando que vários países das Américas estavam notificando surtos de infecções resistentes a medicamentos, provavelmente devido ao uso indevido sem precedentes de medicamentos antimicrobianos no tratamento da Covid-19.
Se somarmos tudo isso, temos um dilema que exige a mobilização de governo e sociedade: de um lado, temos pacientes que sentem dor ou passam por diversas outras situações de saúde que exigem tratamento medicamentoso, além de muitos com questões de desequilíbrio químico mental que precisam resolver com remédios. De outro, temos aqueles pacientes que se medicam sem orientação, têm acesso a medicamentos que, em teoria, deveriam ser restritos, aqueles viciados em remédios para dor e muitos outros que fazem uso de remédio sem conversar antes com um médico. Até descongestionante nasal, acreditem, pode viciar. A rinite medicamentosa é um dos possíveis efeitos da aplicação excessiva de descongestionantes nasais. Esta categoria de rinite é um efeito rebote do uso do medicamento, isto é, acaba potencializando a irritação no nariz.
Não é brincadeira. Automedicação é um erro que pode causar impactos importantes na saúde global das pessoas e até levar a óbito. E embora haja grande diferença entre os impactos de diferentes fármacos, a minha orientação, enquanto médico e especialista em farmacologia é: não se automedique, não medique seus filhos e filhas sem orientação médica. Já basta o tamanho do impacto que a pandemia nos causou – e ainda causará por algum tempo –, não devemos nos autoinfligir mais nenhum.
Vamos cuidar da nossa saúde porque a única certeza que temos é de que a vida é uma só.
Psiquiatra, especialista em farmacologia e professor do curso de Medicina da Universidade Santo Amaro – Unisa