Nunca na história individual e coletiva, fomos tão inundados pelo fantástico, pela imaginação compulsiva que tenta nos fazer crer que possuindo esse ou aquele aparelho nossas vidas mudarão completamente, seremos então felizes por excelência, nada irá mais nos atrapalhar rumo à conquista tão merecida da felicidade. As imagens pipocam dia e noite onde quer que andemos e também nas redes não tão sociais assim, elas não nos deixam pensar, não conseguimos pesar o valor de cada uma delas para a nossa existência, em outras palavras, aquilo que realmente agrega sentido ao meu viver, tornou-se lugar comum viver para consumir toda e qualquer quinquilharia a preço de ouro; nossa vã lucidez acredita que usando essa ou aquela marca seremos libertos dos infortúnios que nos afetam, trágico engano, mesmo que um cachorro se torne um dia leão, ele sempre será cachorro.
Um dos elementos mais estruturantes hoje da vida moderna é sem dúvida alguma o automóvel, objeto de desejo por quase todos, mas que nem todos podem tê-lo como gostariam, o automóvel atiça as paixões humanas, injeta naquele que está dirigindo um certo tipo de poder que muitas vezes ultrapassa a capacidade humana de poder controlá-lo. O automóvel passou e vem passando por profundas transformações, basta perdermos nosso tempo por alguns instantes nas tão bem elaboradas propagandas sobre os mesmos, propagandas que tentam a todo custo nos convencer que se você adquirir aquele determinado veículo, ele será a salvação da sua lavoura. Mas a propaganda diz muito menos do que ela realmente apresenta, mesmo assim suas propostas são agressivas, imaginativas ao extremo, isto é, em cada automóvel um excesso a mais, um sonho a mais.
O automóvel traz consigo muitos e grandes benefícios, não resta nenhuma dúvida, haja vista que os nossos transportes públicos, com raríssimas, louváveis e pontuais exceções, são de uma calamidade sem igual, assim nossas ruas e rodovias viram aumentar assustadoramente o número de automóveis circulando, aumentando o número deles, surgiram muitos outros entraves para a vida em geral, talvez a poluição seja o maior deles, pois um carro é movido por combustível fóssil, altamente poluente e prejudicial ao meio ambiente. Outro aspecto é que o automóvel aos poucos vai se deteriorando, vai perdendo seu valor, na verdade são fabricados para durarem muito pouco, é a tão conhecida obsolescência programada em todos os setores; o automóvel produz um tipo diferente de amor, isto é, ele não tem idade, sexo, raras são as regras para aqueles que o conduzem.
O imaginário humano, tão complexo, e bem rico para certas situações, nesse campo aos poucos vai caindo no esquecimento, que por sua vez traz consigo o silêncio devastador que assola o globo de ponta a ponta, a maioria dos seres humanos não está nem aí para aquilo que pode lhe tirar o sossego dentro de poucos anos, não lhes interessa as altas emissões de gases poluentes na atmosfera, são incapazes de questionarem todas as novas doenças que vem aparecendo nos últimos anos, a pior doença é aquela cegueira coletiva na qual estamos caindo facilmente, as aparências de legitimidade parecem nos confortar rapidamente, assim nossa história vai sendo construída sob ruínas mal disfarçadas; acima de tudo nossa civilização se recusa em ver e aprender com as suas conquistas; em especial, os donos do poder gostam de permanecer em seus delírios, na sua “onipotência”.
Ter um automóvel, não nos assegura ter então um sucesso promissor, ele pode muito bem nos enganar, pois logo vem outros, mais potentes que os anteriores, é a espiral sem fim dos desejos incontroláveis e não menos inconfessáveis, ser intenso é o que manda a regra, o automóvel nos dá uma sensação apenas efêmera, não lá muito estável, a cada lançamento de um automóvel, podemos ver nele de modo implícito que há uma verdadeira ojeriza em relação ao tempo presente, quase sempre insuportável e caótico, o qual precisa ser vencido a qualquer preço, mesmo que se precise passar por cima de todas aquelas outras formas de vida que são infinitamente superiores a um automóvel. O automóvel não nos livra dos impasses, das armadilhas e riscos que ele nos coloca a todo instante; na era do consumo oportunista, estar abandonado à própria sorte é o que nos empanturra sempre.
Bioeticamente, o uso do automóvel pela nossa sociedade brasileira, deveria ser amplamente revisto e discutido, automóveis possantes demais em mãos de pessoas cuidadosas de menos, quantas tragédias anunciadas, quantas violências perpetradas por maus motoristas, quantos motoristas criminosos que estão impunes em nosso meio, fianças ridículas os colocam em liberdade quase que instantaneamente, enquanto a família que perdeu seu ente querido fica a ver navios. Não se pode permitir que um movimento antieducacional no trânsito prevaleça sem mais nem menos, não podemos permitir que o nosso pensamento seja embargado de maneira tão vil como acontece hoje na esfera do trânsito, a emoção fugaz não pode se sobrepor às vidas inocentes perdidas por causa da voluptuosidade insana de maus motoristas, a sociedade atual se gaba de ser superficialmente profunda, oxalá amanhã ou depois sejamos uma sociedade que se gaba de ser justa, cada vez menos míopes; um automóvel em mãos erradas é sim ambivalente.
Rosel Antonio Beraldo, mora em Verê-PR, Mestre em Bioética e Especialista em Filosofia pela PUC-PR; Anor Sganzerla, de Curitiba-PR, é Doutor e Mestre em Filosofia, é professor titular de Bioética na PUCPR.
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