Flori Antonio Tasca
Sabe-se que tem sido cada vez mais abrangente o rol de práticas encaixadas na categoria de bullying. Situações antes vividas como banais e corriqueiras agora são interpretadas com outros significados. E, com frequência cada vez maior, esses conflitos acabam tendo que ser resolvidos na Justiça. Isso levou as pesquisadoras Camilla Felix Barbosa de Oliveira e Leila Maria Torraca de Britto a empreender o estudo “Judicialização da vida na contemporaneidade”, publicado em 2013 pela revista “Psicologia: Ciência e Profissão”. O bullying expressaria bem o que se entende por “judicialização da vida”.
Trata-se do movimento em que o Judiciário se torna o principal caminho para as situações que constituem conflitos de convivência. Os casos passam a ser abordados em termos de distúrbio a ser diagnosticado ou infração a ser punida, gerando vítimas ou culpados e ignorando todos os processos sócio-históricos envolvidos. A atenção se volta ao indivíduo, isoladamente, e o próprio Judiciário pode legitimar esse modo de agir.
Os episódios de bullying seriam um dos exemplos onde isso acontece de forma mais intensa, assim como aqueles que envolvem alienação parental. De uns tempos para cá, não apenas a escola tem ido à polícia para resolver questões de violência, mas a própria polícia tem sido chamada para dentro das escolas, a fim de garantir a segurança dos alunos. As autoras destacam a ausência de tentativas de diálogo entre família e escola, recorrendo-se, de imediato, à intervenção da polícia e de outras instâncias judiciárias.
O fato de o bullying alcançar, de uns tempos para cá, ampla divulgação midiática pode contribuir para reforçar a ideia de tratamento jurídico para o fenômeno. A mídia, afinal, pode tratar temas amplos e complexos, como violência, educação e relacionamentos, de uma forma fragmentada, desconsiderando-se toda a rede coletiva que os envolve. As autoras aludem a uma “cultura da vitimização”, quando o primeiro passo a ser tomado por um aluno que vivencia problemas nas relações escolares é apontar um responsável.
Embora sob a justificativa de “humanização do sistema jurídico”, as leis e os processos passam a regular danos, afetos, interferências e humilhações. A mesma humanização que pretende garantir o bem-estar e a proteção dos direitos individuais perpetua uma lógica punitiva. Em favor do ser humano, clama-se por intervenções jurídicas, práticas de controle, encarceramento e punição, o que, na visão das pesquisadoras, alimenta a judicialização de nossas vidas. A segregação social e a culpabilização do indivíduo seriam reforçadas, além das políticas penais repressivas, violentas e estigmatizantes.
As autoras do estudo destacam que prevalece uma ordem social baseada no medo, a qual legitima a violação dos direitos daqueles que são tidos como perigosos. Esses são equiparados a monstros. A eles reserva-se o descaso, o controle e a criminalização. O outro será sempre um risco em potencial do qual é preciso se proteger. Assim é que se justifica a polícia na escola. As autoras mencionam um “campo de concentração a céu aberto”.
Um dos problemas provocados por essa situação é que se deixa de priorizar a criação de políticas públicas que garantam acesso à saúde, educação e lazer para as crianças. Também se dificulta a reflexão e o exercício crítico. Responsabiliza-se alguém por um crime, mas nega-se a possibilidade de reconhecer que ele não é um ser determinado ou uma vítima das circunstâncias, mas ator social, político, ativo, sujeito às mudanças e transformações que ocorrem o tempo inteiro, com diferentes contextos e variáveis.
Como as pesquisadoras são da área de Psicologia, elas também apontam os riscos de uma perspectiva limitante para a profissão, uma vez que pode reproduzir uma prática classificatória reducionista. Elas questionam se devem continuar a reforçar a ideia de que o problema está no sujeito em si, isolado, sem considerar questões políticas, sociais e culturais. E sugerem práticas voltadas realmente para a vida, e não para a violência.
Educador, Filósofo e Jurista. Diretor do Instituto Flamma – Educação Corporativa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, fa.tasca@tascaadvogados.adv.br
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