Pela primeira vez, o preparo físico entrou em campo como ciência. Até então, a questão física era vista como importante, mas os times não costumavam ter um preparador específico, realizando, muitas vezes, treinos empíricos, baseados até na utilização de halteres ou de luta. O futebol flertava com o amadorismo, com a ginga e a malandragem das ruas.
A partir de então, a busca de um melhor condicionamento físico passou a ser direcionada a um setor específico dos clubes. De lá para cá, muita coisa mudou e hoje, mais uma vez, os olhos no futebol estão voltados para a preparação física, que tem levado o esporte para condições desafiadoras, como o excesso de contusões musculares que têm tirado atletas de qualquer idade de jogos muitas decisivos.
COOPER – A seleção em 1970 coroou essa filosofia, já baseada em novos métodos que surgiam, como os do médico americano Kenneth H. Cooper. Em 1968, ele apresentou, para as Forças Armadas dos EUA, o famoso teste de Cooper, implementado no Brasil por Cláudio Coutinho. O teste de Cooper analisava a capacidade cardiorrespiratória de um atleta após ele percorrer uma distância em 12 minutos, podendo valer para corrida ou caminhada.
“O treinamento era mais baseado em coletivos e exercícios calistênicos (baseados no peso do próprio corpo). Na década de 70, entraram os alongamentos e a preparação aeróbica seguindo as teorias de Cooper”, diz o médico Edilson Thiele, membro da comissão médica da CBF e diretor médico do Athletico-PR até 2011.
A preparação física foi impulsionando a mudança do próprio futebol. O jogo foi ganhando cada vez mais intensidade. A esse aumento do ritmo, o avanço da ciência foi se moldando para sustentar uma nova necessidade: a resistência anaeróbica – com baixa quantidade de oxigênio, em exercícios de explosão muscular.
O aumento da velocidade diminuiu os espaços e, nestes movimentos curtos, competitivos, a fadiga muscular e as lesões se tornaram um risco. Nasceu a necessidade de especificar, nos testes, as reações de cada atleta. O preparo passou a ser muito mais detalhado e individualizado, levando em conta até a posição de cada um em campo. “A intensidade do jogo aumentou, então a força se transformou numa valência importante. A mensuração das cargas de trabalho é fundamental”, diz Thiele.
Esse novo contexto trouxe o chamado futebol total. Um prenúncio disso foi o Carrossel Holandês, de Rinus Michels na Copa de 1974. O próprio Paulo Amaral, como observador de Zagallo, foi incumbido de fazer um relatório sobre a Holanda no jogo contra a Argentina (vitória holandesa por 4 a 0). Amaral ficou perplexo. “Vi o lateral-direito na ponta-esquerda, o lateral-esquerdo no meio-campo, o Cruyff na defesa, de repente no ataque e em seguida no meio”, disse.
O departamento médico e a preparação física passaram a ser determinantes para o plano de jogo. Tudo isso para um objetivo simples: o jogador não pode se machucar por desconforto muscular ou mau preparo físico, como tem ocorrido no futebol nacional.
A parte física se associou aos conceitos de jogo, em um modelo que mistura movimentos, velocidade e técnica precisa. A preparação deixou de ser complemento para se tornar imprescindível. “O treinamento e a preparação dos atletas há algumas décadas eram proporcionais ao que o esporte exigia. Sabe-se que o futebol apresentou evolução em termos de exigência física. Antes, um jogador corria, em média, 6 ou 7 km por jogo. Atualmente, corre 12 km/jogo. O número de sprints mais que dobrou”, explica Sérgio Freire Jr., que além de responsável médico pela sede de Belo Horizonte na Copa de 2014, Olimpíada de 2016 e Copa América de 2019, atuou até 2018 como médico do Cruzeiro.
FIFA MEDICAL – Um aliado dos jogadores na luta pela preservação física foi Criado pelo Fifa Medical and Research Center (F-MARC). O método iniciou como Fifa 11 para amadores. Em 2006, se tornou 11+, voltado ao profissional. O objetivo é reduzir as lesões, com processo de aquecimento que substitui o convencional. Vários recursos são utilizados, como tecnologias de aparelhos de análise (termografia); exames bioquímicos (enzima CK, PCR); aparelhos de recuperação (fisioterapia); recursos humanos de treinamento e recuperação (Recovery); análise e cuidados do sono e acompanhamento nutricional. A partir das análises, o técnico avalia se escala ou não o jogador.
PANDEMIA CONTRIBUIU – Um estudo que contou com a participação da CBF, de autoria dos médicos Gabriel Furlan Margato, Edilson Ferreira Andrade, Paulo Henrique Schmidt Lara, Jorge Roberto Pagura, Moisés Cohen e Gustavo Gonçalves Arliani, revelou uma tendência de queda de lesões musculares no futebol brasileiro entre 2016 e 2018. O total de lesões foi de 577 ao longo das três temporadas, em que foram constatadas reduções graduais na incidência: 219 lesões em 2016, 195 em 2017, e 163 em 2018.
Como uma das sequelas da pandemia, os médicos têm a convicção de que o número de lesões aumentou a partir de 2019. A principal causa é o excessivo número de jogos. Clubes como Flamengo, Palmeiras e São Paulo já somam mais de 50 casos de lesões em seus atletas. “2020 praticamente se emendou em 2021. O aumento no número de jogos, além de outras questões, como posições na tabela, pouco tempo para treinar e de recuperação, são fatores que contribuíram para o aumento de lesões”, diz o fisiologista Rinaldo Dantas Queiroz, da Unifesp.
“Uma lesão anterior é o maior fator de risco para outra lesão no mesmo local”, ressalta André Pedrinelli, membro do Grupo de Medicina Esportiva do HC, que já foi médico do Palmeiras.
O excesso de jogos leva a um desgaste maior da musculatura, provocando contusões. Por isso, a Federação Nacional dos Atletas Profissionais de Futebol atuou para forçar que as férias dos jogadores ocorram de 10 de dezembro a 8 de janeiro, o que possibilita pré-temporada antes do início das disputas regionais de 2022, dia 26 de janeiro. O tempo de recuperação faz parte do processo. No futebol, o avanço é científico. Mas o descanso sempre será humano.
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