Flori Antonio Tasca
Um violento trote universitário resultou em queimaduras de 3º grau em uma caloura, com deformações que lhe acompanharão por toda a vida. Isso porque os veteranos jogaram nas costas dela uma mistura que incluía a substância Solupan, utilizada para lavar motores de carro e extremamente corrosiva. O caso foi apreciado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que, por meio da 5ª Câmara Extraordinária de Direito Privado, julgou em sessão do dia 13.08.2014 a Apelação Cível 9176639-02.2009.8.26.0000.
Consta dos autos que o episódio aconteceu dentro da quadra situada nas próprias dependências da instituição de ensino. Dois veteranos saíram para comprar Solupan em um posto de gasolina, enquanto um terceiro misturou a substância com outros produtos e passou a jogar o conteúdo das garrafas nos calouros que estavam na quadra.
Na ação judicial que se seguiu ao evento, um dos veteranos alegou que não se podia dizer que ele havia assumido o risco só por ter transportado o produto para a faculdade. Outro afirmou que não podia ser responsabilizado pelo simples fato de ter comprado o produto, e sugeriu ainda que a própria vítima contribuiu para o evento, por ter omitido a possibilidade de ser alérgica a determinados produtos químicos. E o terceiro alegou desconhecer o conteúdo das garrafas que foram atiradas por ele na direção dos calouros.
Conforme anotou o relator da apelação, desembargador Paulo Alcides Amaral Salles, é irrelevante que os veteranos desconhecessem os efeitos do Solupan. Todos assumiram o risco, agindo, no mínimo, com dolo eventual e praticaram ato ilícito que é passível não só de responsabilização no âmbito criminal como também no cível. O magistrado de primeiro grau condenou os três a pagar indenização, além da faculdade onde os fatos ocorreram.
O relator destacou que, tradicionalmente, a recepção aos recém-aprovados é marcada por festas e comemorações, mas também por trotes, que só serão lícitos se não forem violentos e se forem aceitos livremente pelos calouros, sem coerção. Embora, por conta de abusos, existam hoje modalidades mais saudáveis de trote, como o “solidário”, a regra ainda é que os trotes sejam repletos de atos de zombaria, violência e humilhação.
Ele ressaltou que os atos de violência não devem ser aceitos como mera brincadeira, pois são atos de tortura que deixam sequelas. E opinou: “É absolutamente inaceitável que um veterano imponha condutas aos calouros que venham a lhes causar danos à saúde, à vida ou os atinjam em sua dignidade”. O relator citou casos chocantes que já foram noticiados no Brasil, como o de um calouro que morreu afogado em uma piscina durante um trote, e defendeu providências mais rígidas para enfrentar essas situações.
No caso em questão, era clara a prática do trote violento. As provas colhidas demonstraram a gravidade da conduta irresponsável dos envolvidos. Embora não exista uma lei federal a respeito dos trotes, São Paulo conta com uma lei estadual proibindo a sua realização quando eles acarretarem riscos à saúde ou integridade física dos alunos.
A mesma lei atribui à instituição a responsabilidade de impedir a prática de trotes violentos, ainda que fora das suas dependências. Por isso, não foi suficiente o argumento da faculdade de que não havia comprovação do local do trote, ou de que o diretor havia proibido a sua realização, instaurado sindicância e punido os participantes. Desse modo, a faculdade devia responder solidariamente, arcando com a condenação.
O valor a ser pago à vítima foi arbitrado em primeira instância em R$ 8.300, valor que o relator considerou ínfimo, diante das circunstâncias e consequências do evento, mas não pôde aumentá-lo porque não houve recurso para isso. A sentença foi mantida.
Por fim, o relator ponderou: “Condutas como a descrita nos autos devem ser punidas com maior severidade, como forma de inibir a reiteração da prática repugnante e cruel que ano após ano continua a estampar as reportagens televisivas, cometida por universitários-veteranos que, em regra, deveriam dar o exemplo, diante das melhores possibilidades e nível intelectual que sabidamente ostentam”.
Educador, Filósofo e Jurista. Diretor do Instituto Flamma – Educação Corporativa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, fa.tasca@tascaadvogados.adv.br