Câmara prevê maior reforma eleitoral das últimas três décadas

Os brasileiros sabem que vão às urnas em 2022 para escolher presidente, governador, senador e deputados federal e estadual, mas, por enquanto, não sabem como se dará o processo eleitoral nem mesmo qual modelo de voto será adotado e por qual meio, se apenas eletrônico ou também impresso. As incertezas sobre o pleito do ano que vem resultam da abertura inédita, pela Câmara dos Deputados, de três frentes distintas e simultâneas de trabalho que podem culminar na maior e mais impactante reforma político-eleitoral desde a redemocratização.

Os debates ocorrem no momento em que a Casa funciona de maneira semipresencial em função da resiliência da pandemia de covid-19 no Brasil. Com uma média superior a 2 mil mortos por dia e no contexto de uma CPI em funcionamento no Senado para apurar responsabilidades do governo Jair Bolsonaro na maior tragédia sanitária dos últimos 100 anos no País, deputados discutem mudanças significativas nas regras eleitorais sem alarde e praticamente sem a participação da sociedade civil. Ao todo, os três grupos realizaram 20 audiências públicas remotas, onde os interessados em acompanhar só assistem às exposições de convidados.

Mudanças pontuais são debatidas de maneira recorrente desde 1996, quando a primeira comissão especial foi instalada na Câmara para reformar a legislação eleitoral vigente à época. De lá pra cá, outros 15 grupos semelhantes (excluindo os três atuais) definiram, por exemplo, o fim da doação empresarial para campanhas, a criação dos fundos públicos de financiamento, a exigência de ficha limpa e o fim das coligações proporcionais, entre tantas outras. Mas nunca um conjunto grande de mudanças de uma só vez.

Essa é a principal diferença da iniciativa atual da Câmara para as demais, segundo um grupo de organizações e movimentos civis que se uniram em um manifesto intitulado Freio na Reforma. A ação visa chamar a atenção da sociedade para o risco de se reformar a política sem um debate aprofundado.

“Além da inédita quantidade de arenas discutindo a possibilidade de mudanças estruturais e acessórias no sistema político brasileiro, também chama a atenção a abrangência dessas possíveis modificações, pois todo o sistema eleitoral, de forma ampla, seus atores e principais processos estão sendo analisados e são passíveis de mudanças”, ressalta estudo da Transparência Partidária, ITS Rio e Pacto pela Democracia.

Sistema. Um “catadão” de emendas apresentadas pelos parlamentares à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 125/11, usada como base para a reforma, inclui questões como tempo de mandato, número total de deputados, voto facultativo, cotas raciais e de gênero, recall de mandatos, financiamento de campanhas, fidelidade partidária, candidatura avulsa e até o próprio nome da Câmara dos Deputados, que passaria a se chamar Câmara Federal, pela proposta.

“Não há nenhum aspecto relacionado a eleições ou funcionamento do sistema político que não esteja sendo discutido”, diz o cientista político Marcelo Issa, que é diretor executivo do Transparência Partidária.

Emendas propõem flexibilização da cláusula de barreira

Novata no rol de regras eleitorais em vigor no Brasil, a cláusula de barreira já corre o risco de ser flexibilizada. A lista de possibilidades vai desde propostas que preveem seu congelamento a outras que incluem senadores eleitos na conta que define quais partidos poderão ter acesso a recursos do fundo partidário. Esse é apenas um dos pontos em discussão em uma lista que tem mais de 50 emendas.

À frente dessa organização de demandas está a deputada federal Renata Abreu (PodemosSP), que rechaça críticas feitas pela sociedade civil em relação à baixa participação popular no processo ou mesmo ao timing escolhido para se avançar com uma reforma político-eleitoral em plena pandemia. “Esse é um debate que ocorre na Casa há muitos anos. Estamos apenas dando continuidade a um trabalho já iniciado. Nada está sendo feito a toque de caixa”, diz ela.

Relatora da PEC 125/11, escolhida para abrigar a reforma, Renata defende, por exemplo, a inclusão de senadores na cláusula de barreira, adotada em 2018. “Cada vez que se tem uma alteração é natural que depois se faça uma revisão com o intuito de se avaliar o impacto”, afirma. Levar em conta também a bancada de senadores na primeira metade do mandato seria, portanto, uma evolução da regra que, segundo a parlamentar, favoreceria partidos como a Rede – que elegeu só uma deputada, mas cinco senadores. Mas também o seu Podemos, hoje com 9 representantes no Senado.

A cláusula de barreira ou de desempenho (como também é chamada) tem o objetivo de impedir ou restringir o funcionamento do partido que não alcançar determinado porcentual de votos na eleição para a Câmara dos Deputados. A meta é reduzir gradativamente o número de legendas – são 33 hoje.

Para cumprir a regra, cada partido terá de alcançar o mínimo de 2% dos votos válidos em 2022, ou eleger 11 deputados em pelo menos um terço das unidades da Federação. Os que não conseguirem ficam sem acesso ao fundo público que custeia os gastos das siglas e também sem o tempo de rádio e TV no horário eleitoral. Na eleição de 2018, 14 siglas não conseguiram cumprir essa condição.

Considerado essencial para organizar a democracia brasileira e impedir o surgimento dos chamados partidos de aluguel, o dispositivo considera a bancada eleita por cada legenda no Senado.

Mas os dribles à regra não têm consenso entre os parlamentares, ao menos por enquanto. Pesquisador da FGV-SP, o cientista político Humberto Dantas ressalta que quando determinado grupo político defende muito o seu ponto de vista, perde-se, normalmente, as pontes que se têm com os demais. “Quanto mais a reforma parecer beneficiar algum agente de forma singular, maior a chance de não dar certo”, afirma.

Dantas lembra que outras tentativas de reformas amplas foram bastante reduzidas ao longo do processo. “Toda grande mudança causa reverberação. Ou agrada a todos – e desagrada a opinião pública – ou não tem reforma.” Sobre a possível flexibilização da cláusula de barreira, o pesquisador diz que ela já nasceu flexibilizada. “Permitir a junção de partidos que não a alcançaram é uma das formas; escalonar no tempo os porcentuais válidos é outra”, diz.

Financiamento. Tão polêmica como a possível mudança do sistema eleitoral ou a impressão do voto, a proposta de retorno da doação empresarial a campanhas tem um componente a mais, segundo especialistas ouvidos pelo Estadão: o simbolismo da medida.

Vetada pelo Supremo Tribunal Federal em 2015 como forma de reduzir a corrupção e a prática de caixa dois, na esteira da Operação Lava Jato, o financiamento privado surge agora como opção para reduzir os gastos públicos. Nas eleições de 2018, foram retirados R$ 3,8 bilhões dos cofres públicos para o custeio das campanhas.

Segundo proposta do Novo, os partidos e as campanhas seriam financiados exclusivamente por doações de pessoas físicas ou jurídicas, “observados os princípios da transparência e da moralidade”, bem como a vedação por um mesmo eleitor ou uma mesma empresa a mais de um candidato ao mesmo cargo no Executivo.

Jogar a atenção para essa mudança, que dificilmente alcançará consenso, pode “esconder” outra proposta de interesse geral das legendas, que é a redução do poder de fiscalização da Justiça, sobretudo em relação à arrecadação e aplicação dos recursos públicos e à sua competência. As três reformas em curso na Câmara querem reduzir até o alcance da Justiça Eleitoral, que perderia sua competência criminal.

“A condição na qual nos encontramos, seja pelas dificuldades impostas pela pandemia, seja pelas disposições autoritárias que se verificam frequentemente, deveria fazer com que esse debate ocorresse com uma dose a mais de transparência e participação social. Não é uma tarefa simples, especialmente no contexto atual, mas não nos parece exagero dizer que disso pode depender o futuro da democracia no Brasil”, ressalta.

A preocupação em relação ao ritmo célere de debates e eventual aprovação de um conjunto tão grande de mudanças – o prazo é outubro, um ano antes da eleição – é dividida por movimentos que cresceram muito nos últimos anos e ajudaram a renovar em parte a composição da própria Câmara, como os grupos de formação política RenovaBr, Agora! e Acredito.

“Mudar o sistema eleitoral, por exemplo, teria um impacto muito grande, principalmente se os próprios deputados ficarem incumbidos de definir eventuais distritos (se a troca fosse para o distrital puro, misto ou distritão, levando em conta também as eleições para deputados estaduais e vereadores). Não há modelo perfeito, mas o distritão, especificamente, ajudaria as pessoas que já estão na política a se perpetuarem no poder, reduzindo a renovação”, diz a cientista política Mariana Lopes, que preside o Acredito. No chamado distritão, são eleitos os deputados federais mais votados por Estados

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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