(Paulo Argollo)
Eu não entendo: 22 anos se passaram e as discussões continuam as mesmas! Eu realmente não entendo por que o Big Brother incomoda tanta gente. Desde a semana passada, quando estreou a vigésima segunda edição do reality, as redes sociais foram inundadas de comentários e memes diminuindo e criticando não só o programa em si, mas também quem o assiste. Olha, tudo bem você tentar conhecer melhor uma pessoa baseando-se nos gostos dela para filmes, livros, música e etc. Eu mesmo faço muito isso. Mas, convenhamos, uma coisa é você supor que uma pessoa é sensível e introspectiva porque gosta de filmes europeus e ouve Joy Division e Belle and Sebastian. Outra coisa totalmente diferente é você afirmar que uma pessoa é burra ou sem cultura porque assiste BBB ou ouve funk.
Tenho pensado muito sobre o tempo em que vivemos. Quem, assim como eu, já está na faixa dos 40 anos de idade ou mais, viu muita coisa mudar, tanto na produção cultural, quanto tecnológica. Vimos o vinil e a fita dar lugar ao CD, o VHS dar lugar ao DVD. Vimos os primeiros, imensos e caríssimos telefones celulares, que evoluíram para o smartphones. Vimos a internet se popularizar e se tornar uma nova mídia com inúmeras plataformas. Vimos o pop exagerado e glamoroso dar lugar aos cabelos ensebados e camisas de flanela do grunge, vimos os punks se moldarem e invadirem o mainstream, vimos o surgimento dos emos, o renascimento do pop, a popularização do rap, do R&B, do hip hop. Vimos o nascimento de um novo gênero de programas de TV: os realities shows.
Foi em 1999 que o holandês John De Mol conseguiu viabilizar sua ideia inovadora e polêmica de trancafiar um grupo de pessoas numa casa cheia de câmeras, transmitindo o convívio dessas pessoas 24 horas por dia, selecionando as partes mais interessantes de cada dia numa edição criativa, construindo narrativas e conflitos e, semanalmente, eliminando uma pessoa, até que só sobre uma, que vai receber um prêmio. Essas pessoas não são celebridades, são pessoas comuns, desconhecidas, o que torna o programa ainda mais interessante. Para fechar a conta, De Mol deu ao programa uma aura de transgressão e voyeurismo ao fazer referência ao clássico livro 1984, de George Orwell, batizando o programa de Big Brother, e tendo uma sala onde cada participante entra sozinho para falar com a câmera, e essa sala se chama confessionário.
É chover no molhado falar sobre a grandeza do romance 1984. Talvez seja o livro de ficção mais importante do século XX (opinião minha, pessoal, não é uma afirmação categórica, ok?). O viés premonitório que a obra foi ganhando com o passar dos tempos é impressionante. Apesar de não vivermos numa sociedade tão claramente passiva perante um governo terrivelmente autoritário, opressor, castrador e truculento, estamos igualmente vulneráveis, com nossas vidas expostas, cercados de telas que nos observam, que conhecem nossos passos e desejos. Vivemos diante de uma mídia tão caótica e hipnotizante ao mesmo tempo. Somos influenciados pelos influencers. Mas quem é que influencia os influencers? A obra de Orwell não traz respostas, mas nos mostra como é possível ter uma boa visão do futuro se soubermos estudar, entender e ter uma interpretação objetiva do passado. Orwell escreveu 1984 baseado nos acontecimentos que ele próprio presenciou, como a Revolução Russa, o Stalinismo e a Segunda Guerra Mundial.
Agora, pensa bem: o que a Revolução Russa e a Segunda Guerra Mundial tem a ver com o mundo de redes sociais, realities shows, globalização e consumismo desenfreado? A resposta é evolução. Causa e consequência. Ainda mais distante no passado, seguimos ainda lutando por Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Mas a gente sempre se perde no meio do caminho. Tropeça, cai, levanta, entra por uma trilha errada depois volta pra estrada principal. E assim segue a humanidade. Mas o certo é que hoje em dia temos, sim, alguma liberdade, ainda que bem capenga, tentamos ser fraternos, mas estamos bem longe de conquistar a igualdade.
E não vai ser na base do grito, do xingamento, do julgamento vazio na internet que vamos conquistar isso tudo. Não sejamos extremistas ao ponto de dizer que o Big Brother é uma maravilha de programa de TV, mas é um bom entretenimento, uma coisa leve e divertida e que consegue, vez por outra, levantar, mesmo que sem querer, questionamentos importantes para a sociedade, como racismo, homofobia e etc.
Claro, seria incrível que quem assiste ao BBB e também quem cospe críticas furiosas nas redes pudessem ler mais. Não só ler o 1984, mas ler sobre história, ler bons romances, se interessar, absorver conhecimento em vídeos no youtube, podcasts… seja onde for, mas sempre procurar saber mais! Mas, por enquanto, ainda estamos fadados a acreditar ingenuamente que enxergamos 5 dedos.
HOJE EU RECOMENDO
Disco: The Wall
Artista: Pink Floyd
Ano de lançamento: 1979
Além de grandes canções, é um disco que tem tudo a ver com a temática do livro 1984 e uma imagem perigosamente real do ser humano fechado dentro de si mesmo. Mais atual impossível.