Cem anos dedicados à complexidade

Rosel Antonio Beraldo e Anor Sganzerla

“Você já pensou em chegar numa boa aos quarenta? Por que você não tenta? Por que não experimenta? Você quer dançar ao som do Soul dos anos sessenta, então por que não reinventa? Por que não experimenta? As vezes a vida voa, as vezes ralenta e as vezes arrebenta, por que não experimenta? E tudo que a gente não fez e agora lamenta, por que você não tenta? Por que não experimenta? Não tenha medo da loucura, do escuro da solidão, nem do elefante branco na contramão e se o mundo dá tanta volta não há tempo de olhar pra trás, repetindo os velhos erros dos nossos pais, que descanse em paz”. A banda Tigres de Bengala foi assim muito feliz em nos brindar com uma música poderosa, atual, tão genial como os seus compositores, ela resiste ao tempo, nos dirige verdades num tempo que nos desafia sob todos os aspectos; viver num tempo assim requer muitas forças.

Na atual fase em que se encontra a humanidade, chegar aos cem anos de idade não é qualquer um que consegue, ainda mais mantendo uma vivacidade e um desejo ardente de buscar soluções para que todos possam viver dignamente; Edgard Morin é um desses poucos que conseguiram tal façanha no último dia oito de julho, cem anos presenciando e vivendo as mais diversas complexidades que um ser humano pode ter em seu caminho existencial, cem anos transgredindo todas e quaisquer transformações que venham a abalar as estruturas do ser humano, um defensor árduo de que todos os saberes devem dialogar entre si para juntos encontrarem-se no todo que os forma e dá consistência; Morin não deve ser divinizado e muito menos demonizado; ele é alguém que intuiu desde cedo que tanto o mundo como o ser humano estão incompletos, ambos precisam se dar as mãos.

Uma de suas obras mais faladas, badaladas e estudadas sem sombra de dúvidas é o seu “Método”, uma obra que levou trinta anos para ser completada, dividida em seis volumes, aí vemos um Morin perpassando todo o conjunto de ordem e desordem, todas as complexidades que envolvem as relações, bem como toda a gama de relações que dizem respeito aos inúmeros ecossistemas. Saber que o ser humano ainda não está completo e é passível de novos aperfeiçoamentos, quer dizer entre outras coisas de que ele é sempre aberto à mudanças, mas nem por isso deve-se cair nos inúmeros relativismos existentes hoje; para uma melhor mudança, é imperioso dar-se conta que a sociedade não é um mar por onde se navega tranquilamente, aí estão presentes os mais diversos conflitos, as dezenas de contradições possíveis e imagináveis; no fim ele nos diz que tudo se liga a tudo.

Edgard Morin imagina bem os seres humanos, não como parte central num mundo totalmente dominado por eles, antes disso os humanos são meros coadjuvantes na tarefa de darem o melhor de si para que o mundo não feneça pela própria incapacidade humana de gerir os bens à sua disposição, o ser humano precisa se dar conta de que ele é envolto por toda a história, ou seja, o passado que não voltará a ser como era, o presente contendo todo o melhor e o pior desse passado e um futuro amplamente marcado pela incerteza, com tudo podendo acabar bem ou tudo podendo acabar numa vala comum, isso sem nenhuma exceção. Mas para que tudo fique bem, o ser humano precisa melhorar a sua própria condição humana, ou seja, precisa deixar de conviver com o vazio, a fragmentação, a excessiva crença de que ele é o centro de tudo, a medida de todas as coisas, é seu erro.

Os temas abordados por Edgard Morin são aqueles que invariavelmente fazem parte do cotidiano das pessoas em todos os cantos do globo, o pensador centenário do Planeta, lúcido e coerente com todas as transformações em curso não perde de vista aquilo que o ser está fazendo de si mesmo e as consequências que poderão advir de tais mudanças, vê com grande preocupação um possível conflito nuclear, bem como a degradação cada vez maior de todo o meio ambiente. Por mais que o ser humano se arvore em conseguir mais poder sobre tudo, sempre fica aquela sensação de incompletude e é justamente nessa falha que reside os grandes perigos, gerando não poucas incertezas em todos; onipotência não significa ter o controle de tudo, antes pode significar a derrocada de tudo, o que em outras palavras significa uma impotência desmedida, o mundo viral é assim o seu grande vexame.

Bioeticamente, Edgard Morim, dos últimos baluartes da velha guarda do pensamento nem pensa em parar aquilo que ele sabe fazer de melhor, ou seja, estar em contato com os diversos saberes, tecer um caminho comum que leve a humanidade inteira a se dar as mãos para enfrentar as pequenas e as grandes complexidades do sistema vida, ele mesmo tem repetido em diversas ocasiões nos últimos anos que a fragilidade humana é algo inconteste, que todas aquelas certezas que o mundo material nos fez acreditar são apenas efêmeras. Nem tudo está perdido porque juntamente com Morin, estão muitos outros que estão levando adiante sua mensagem; num mundo onde os últimos cem anos foram em todos os sentidos de uma mudança radical e nem sempre para o bem com um único poder tentando de todas maneiras consolidar o seu poder; o resultado não poderia jamais ser diferente, esse poder foi e é incapaz de resolver as questões mais básicas da vida; a única certeza é que não teremos mais certezas, por isso um não decidido a todos os futurólogos.

Rosel Antonio Beraldo, mora em Verê-PR, Mestre em Bioética pela PUCPR, Especialista em Filosofia pela PUC-PR; Anor Sganzerla, de Curitiba-PR, é Doutor e Mestre em Filosofia, é professor titular de Bioética na PUCPR 

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