Em troca de apoiar o governo, um grupo de deputados e senadores pode impor no lugar dos ministros o destino de ao menos R$ 3 bilhões. Uma boa parte do montante foi destinada à aquisição de máquinas pesadas a preços indicados pelos próprios políticos e muito acima da tabela de referência do ministério. Com isso, puderam atender suas bases eleitorais com o compromisso de não incomodar o governo no Congresso.
Esses acordos só vieram à tona após o Estadão revelar ofícios em que deputados e senadores cobravam do governo suas “cotas” numa fatia do Orçamento que deveria ser operada pelo ministério. Em alguns casos, a ordem de onde e como o dinheiro público deveria ser aplicado foi enviada por WhatsApp para ministros, o que escapa de qualquer controle público.
Após a reportagem, a CGU iniciou ações de auditoria a pedido do ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho. Na ocasião, Marinho e outros dois colegas de governo – os ministros Onyx Lorenzoni e Luiz Eduardo Ramos – disseram que iriam processar o jornal por ter apontado sobrepreço nos contratos. O próprio ministro da CGU, Wagner Rosário, desqualificou a reportagem antes da auditoria ser iniciada.
O procedimento tramita em sigilo, com recusa da CGU em disponibilizar as notas de auditoria até agora produzidas. Entretanto, o Estadão teve acesso a um documento de 38 páginas, assinado por um auditor federal do órgão. Ao jornal, o ministério de Rogério Marinho reconheceu a existência do documento. Os resultados da auditoria são compartilhados com a pasta, que pode ajustar as falhas encontradas pela CGU com o procedimento em curso.
A apuração apontou que, em 115 convênios celebrados para a compra de nove tipos de máquinas, “o risco de sobrepreço foi considerado alto (entre 10% e 25%) ou extremo (acima de 25%) pela equipe de auditoria, totalizando o valor de R$ 12,1 milhões”. A conclusão atinge 61% da amostra de 188 convênios firmados entre MDR e municípios com recursos originários de emenda de relator (RP9) no ano de 2020. É esse tipo de emenda que foi utilizada para fazer o “tratoraço”.
A análise da CGU foi feita após pesquisas nos arquivos, termos de referência, pareceres e orçamentos dos convênios que preveem a compra de tratores agrícolas, motoniveladoras, retroescavadeiras, escavadeiras hidráulicas, pás carregadeiras e caminhões basculantes. Em seguida, foi feita a comparação com os preços que o governo federal tem pagado por equipamentos com características similares, por meio dos sistemas Painel de Preços e Comprasnet. O risco de sobrepreço só foi considerado baixo (menor que 5%) ou moderado (entre 5% e 10%) em 73 convênios (39% do total).
Na análise sobre os tratores agrícolas com potência de 75 cv a 85 cv, a CGU identificou 48 convênios de repasses do ministério junto a municípios, para a compra de 112 equipamentos, com custo total de R$ 15,1 milhões. A CGU fez uma pesquisa com contratações similares, e após aplicação de ajustes de índices de preço, adotou como valor médio R$ 113,3 mil por trator.
Ao comparar esse valor com os preços aplicados aos convênios do MDR, a controladoria apontou que “em 40 instrumentos” (aproximadamente 83% dos 48 convênios analisados) há risco “alto” ou “extremo” da ocorrência de sobrepreço, indicando a necessidade de eventuais análises complementares pelo gestor (MDR) e consequente atuação “junto aos convenentes”.
“O total de sobrepreço apurado pela equipe, segundo a metodologia aplicada, foi de R$ 2.525.385,53, o que representa 17% do total previsto pelos convenentes para aquisição de tratores com potência entre 75 cv e 85 cv”, disse a auditoria.
Lei
A nova Lei de Licitações afirma que sobrepreço é o “preço orçado para licitação ou contratado em valor expressivamente superior aos preços referenciais de mercado”. Nos convênios do MDR com municípios, o orçamento ficou a cargo das prefeituras (convenentes). As conclusões da CGU atingem convênios que ainda não realizaram a licitação, em andamento, de modo que ainda é possível a redução nos preços finais. Daí o termo “risco de sobrepreço”.
No entanto, a pasta do Desenvolvimento Regional assinou os convênios concordando com os preços que, se forem mantidos na licitação feita pelo convenente, configurarão sobrepreço e, se resultarem em pagamento, configurarão superfaturamento.
Em uma análise sobre o que levou ao achado de sobrepreço, a CGU apontou que as pesquisas de preço estavam “em desacordo” com a Instrução Normativa nº 73, do Ministério da Economia, de 5 de agosto de 2020. Foram encontradas “inconsistências nas cotações apresentadas”. O relatório também frisou que o MDR não exigiu aos municípios a priorização das pesquisas no Painel de Preços e consultas a aquisições similares de outros órgãos públicos, o que deveria ser feito de acordo com a instrução normativa do Ministério da Economia.
Além disso, a CGU apontou “ausência de procedimentos de controle e/ou banco de dados de referência do MDR, para otimizar a verificação da conformidade dos valores apresentados pelos convenentes na etapa de formalização dos instrumentos de repasse”.
Apesar de ainda não ter se encerrado, a auditoria da CGU já apontou “necessidade de melhorias e/ou implementação de novos procedimentos de controle por parte do MDR de forma a mitigar os riscos de não atendimento à IN nº 73/2020 por parte dos convenentes, assim como eventuais inconformidade/irregularidades na documentação técnica e valores de equipamentos aprovados por meio de convênios”.
Quando o Estadão publicou a reportagem, em 9 de maio, o governo Bolsonaro reagiu enfaticamente. Tentou negar a existência do esquema de distribuição secreta de emendas. Buscou também desqualificar a análise do Estadão sobre os preços dos equipamentos. “A acusação se baseia em um preço de referência que não existe no governo”, disse o MDR.
O ministro da Controladoria-Geral da União, Wagner Rosário, tentou desqualificar a reportagem do Estadão na Rádio Jovem Pan. “Ele diz que o orçamento secreto foi direcionado diretamente para a compra de tratores superfaturados. A reportagem não diz qual trator foi superfaturado”, opinou antes dos auditores se manifestarem.
Marinho disse depois, em audiência à Câmara: “Duvido muito que estão acima dos valores de mercado”.
‘Apuração’
Agora, o Ministério do Desenvolvimento Regional ressaltou ao Estadão que “o referido relatório trata-se de uma apuração preliminar, originada de uma provocação feita pelo próprio ministério, com o objetivo de apurar e sanar qualquer irregularidade que venha a ser constatada”. “Cabe destacar que os convênios encontram-se em fase inicial, sem que qualquer desembolso tenha sido realizado até o momento”, disse. Procurada, a CGU não respondeu.
PARA LEMBRAR
Os aspectos legais e as irregularidades do orçamento secreto estão em apuração no Tribunal de Contas da União (TCU) e no Supremo Tribunal Federal (STF). Na análise das contas da Presidência da República do ano de 2020, o TCU cobrou do governo transparência na execução das emendas, após a área técnica apontar que o modelo adotado pelo governo contrariava a Constituição. As equipes de auditores da Corte de Contas conduzem pelo menos mais três apurações sobre o tratoraço instauradas a partir da série de reportagens do Estadão.
No Supremo, a ministra Rosa Weber aguarda um parecer da Procuradoria-Geral da República para dar continuidade às ações apresentadas por partidos de oposição.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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