Era seu adeus em palavras, quase um ano e meio depois daquilo que fica agora como a despedida artística: a live planetária One World: Together At Home, na qual os Stones apareceram em 18 de abril de 2020 fazendo uma doméstica You Can’t Always Get What You Want com cada um dos quatro integrantes em suas respectivas casas. Watts simulava uma bateria pré-gravada com bom humor, tocando sobre malas e almofadas enquanto parecia rir de si mesmo. O folk dos Stones dizendo “você não pode ter sempre o que você quer” era um pedido de fiquem em casa enquanto o mundo não sabia ainda se o mal que assolava o planeta teria ou não uma vacina. E o primeiro vacinado, no final de 2020, seria justamente da terra de Charlie Watts.
Watts leva com sua partida uma bateria conduzida por uma atitude única entre os bateristas de sua geração. Os grandes, todos eles, não se contentavam com a marcação. Como se fosse uma espécie desprezível de lição 1 de uma aula para iniciantes, marcar o tempo quaternário concatenando bumbo, caixa e chimbal era, para muitos deles, apenas uma base passageira para que tudo começasse a voar pelos ares outra vez. John Bonham no Zeppelin, Ginger Baker no Cream, Keith Moon no Who, Mitch Mitchell com Hendrix e tantos ritmistas alucinados fizeram suas histórias destroçando tempos fortes e fracos pelos ares. Mesmo Ringo Starr, o mais próximo de Watts, passou a rejeitar as marcações a partir de Ticket To Ride, de 1965, e decretou, para a alegria de Paul McCartney, sua liberdade do sistema caixa bumbo chimbal. Enquanto Ringo conseguia incluir seu set nas propostas sonoras dos Beatles explorando a bateria para além do ritmo, Charlie Watts apenas sorria às costas de Jagger e Richards, suspendendo a mão direita para interromper rapidamente o toque no chimbal enquanto a esquerda martelava a caixa, um recurso mais cênico do que rítmico.
A bateria de Watts, mais do que produtora de um som específico, tornou-se a expressão de sua fé. Seu tempo interno estava no coração, não nas disritmias, assim como gostava de ouvir Otis Redding, um de seus ídolos, e como fazia Charles Connor, baterista de Little Richard e Sam Cooke. Se quisesse mesmo, Watts dobraria tempos e rufaria a caixa com toda a destreza que mostrou ter em 1992, quando decidiu provar que não era apenas um “cronômetro do rock”, como diziam os roqueiros que queriam elogiá-lo.
Ao criar o Charlie Watts Quintet, seu grupo de virtuoses swing e bebobs dos anos 50, apresentou um tributo a não menos do que Charlie “Bird” Parker. Uma crítica publicada na conceituada revista Variety relatou uma de suas apresentações: “Aqueles que zombaram dessa turnê como se fosse ela “o brinquedo de um homem rico” ficarão surpresos com a profundidade do compromisso de Watts com o jazz. Watts tem um bom domínio de ritmos e de padrões do bebop, leves e suaves nos pincéis, adepto de andamentos rápidos, mesmo sendo um pouco pesado nas ‘bombas’ acentuadas na caixa. E quem conhece os paradigmas de abertura de Sympathy for the Devil não teria ficado chocado com a facilidade de Watts com o groove latino em Terra de Pajaro.”
Quem assume as baquetas dos Rolling Stones, agora, é Steve Jordan, ex-John Mayer e Stevie Wonder, que potencializa o motor rítmico que já tem o baixo robusto de Darryl Jones desde a saída de Bill Wyman, em 1993. Adeus batidas secas na Gretsch de apenas um tom. Steve é técnico, preciso, pulsante, astuto, versátil, expansivo, o que mais? Ah sim, funky até a medula e gosta de sets completos com até quatro pratos e dois tons, de preferência, da concorrente Ludwig, que teve como seu maior garoto-propaganda ele, Ringo Starr. Jordan tem tudo o que os grandes têm, e isso só traz mais saudades de Charlie Watts: quando o aplaudíamos com lágrimas e por um longo tempo depois que Mick Jagger o apresentava no palco, estávamos aplaudindo também a sua fragilidade.
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