“Durante o período em que ele ficou no hospital, testei mais duas vezes e deu não reagente. Achei que era erro e continuei esperando pelos sintomas”, contou a veterinária. “Quando ele teve alta, testei novamente e nada. Ficou claro que nunca fui infectada.”
O caso não é tão raro quanto pode parecer. Cientistas já tinham percebido que algumas pessoas são imunes à pandemia que continua se alastrando pelo mundo. São naturalmente protegidas contra a covid. Por que algumas pessoas são infectadas e outras não, apesar de terem sido igualmente expostas ao vírus? Por que algumas famílias foram devastadas pela covid enquanto outras passaram incólumes pela pandemia?
Por que alguns indivíduos centenários tiveram formas brandas da doença enquanto jovens sem comorbidades – caso do ator Paulo Gustavo, entre outros – morreram? Haveria um componente genético na vulnerabilidade ou na resistência ao Sars-CoV-2? Essas são algumas das perguntas que os especialistas começaram a se fazer.
Em busca de respostas
Um estudo do Centro de Pesquisas sobre o Genoma Humano e Células-Tronco da Universidade de São Paulo (USP) feito com pares de gêmeos univitelinos e bivitelinos revelou que irmãos geneticamente idênticos expostos à covid tendem a ter sintomas e desfechos parecidos. Já entre os que apresentam genomas diferentes, a tendência mais forte foi de casos distintos. O resultado já indicava um componente genético forte na infecção e na manifestação da doença.
Outra pesquisa do mesmo grupo analisou dados de 86 casais, entre eles Thais e Erik, em que um dos cônjuges foi infectado pelo Sars-CoV2 e o outro não. O objetivo era justamente tentar encontrar perfis genéticos capazes de explicar a discrepância. Os dois trabalhos foram publicados na plataforma científica MedRxiv e ainda não foram revisados por pares.
“A gente tem certeza de que a genética está envolvida em vários aspectos da doença”, afirmou o biólogo Mateus Vidigal, principal autor do estudo. “Queríamos investigar a influência da genética na infecção, na variabilidade de sintomas e no desfecho; além dos mecanismos de resistência e suscetibilidade à doença.”
A partir do sequenciamento genético dos 172 voluntários, os cientistas conseguiram detectar duas sequências específicas de variantes ligadas ao sistema imunológico que chamaram de MICA e MICB. Nos indivíduos infectados, as MICA estavam aumentadas, e as MICB, reduzidas. Nos resistentes, as MICB apareciam mais. A descoberta pode ajudar não apenas a entender o desenvolvimento da doença como também servir de base para futuros medicamentos.
“Uma vez que se conhece o componente genético por trás da covid, isso abre uma nova perspectiva de tratamento”, disse Vidigal. “Os tratamentos hoje não são coletivos, não temos nada muito específico. É importante ter tratamentos mais individualizados para melhorar o prognóstico.”
Os cientistas já sabem, no entanto, que vários genes estão envolvidos e não apenas um, como no caso do HIV. Embora muito rara, a resistência à infecção pelo vírus da aids está presente em 1% da população. Os indivíduos resistentes têm uma mutação em um único gene específico, chamado CCR5.
“Se conseguirmos mapear esses genes, poderemos saber de antemão quem são os indivíduos resistentes e os mais vulneráveis”, afirmou a geneticista Mayana Zatz, que também participa do estudo.
“Com um teste genético simples, por exemplo, poderíamos liberar as pessoas resistentes, que não se infectam nem infectam outras pessoas para circularem
livremente. Essas pessoas poderiam também ir para o fim da fila da vacinação”, acrescenta a cientista.
Idosos
Um terceiro estudo da mesma equipe ainda em andamento analisa diferentes respostas à doença em cem indivíduos nonagenários e até centenários que sobreviveram à covid. Enquanto muitos jovens sem comorbidades tiveram formas graves da doença, alguns desses chamados superidosos (que teoricamente deveriam ser mais suscetíveis) tiveram casos muito brandos.
“A gente espera que esses superidosos que se recuperaram da covid tenham perfil semelhante ao dos indivíduos mais resistentes do estudo dos casais”, contou Vidigal. “Mas não sabemos ainda se serão os mesmos genes, as mesmas variantes, ou se são outros contribuindo para a recuperação. Tivemos o caso de uma mulher de 114 anos que se recuperou, e de um homem de 110 anos que já enfrentou diversas epidemias e também superou a doença.”
Cientistas alertam para o fato de que todos os cuidados de prevenção devem ser mantidos, como uso de máscara, distanciamento social e higiene pessoal. Segundo eles, o fato de algumas pessoas terem se mostrado imunes a uma determinada variante do vírus não significa que elas serão imunes a todas. “Eu tenho medo, continuo seguindo todas as medidas”, diz Thais.
Inteligência artificial pode detectar variantes
Cinco instituições do País criaram em parceria um projeto para combater a covid-19 usando inteligência artificial. O objetivo é empregar essa tecnologia para detectar mais rapidamente variantes do coronavírus, prever possíveis novos focos da doença e identificar comorbidades ainda não associadas a seus casos graves. Dessa forma, ajudaria médicos e gestores na busca por tratamentos e políticas públicas mais eficazes.
A iniciativa é uma das doze selecionadas pela Chamada Pública Brics Covid-19. Essa ação apoia pesquisas de enfrentamento à crise sanitária nos países do bloco. A China não participa. O projeto brasileiro é coordenado pela professora de Robótica e Inteligência Artificial Esther Colombini. Ela integra o Instituto dos Engenheiros Elétricos e Eletrônicos (Ieee). Também atua em colaboração com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Atuam no projeto ainda pesquisadores da própria Unicamp, da USP, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e do Insper. “Médicos e especialistas só conseguem identificar novas cepas quando eles vão percebendo novos padrões da covid”, lembrou Esther. Com o uso de inteligência artificial, será possível analisar milhões de prontuários e exames clínicos e de imagem para identificar mais rapidamente esses padrões. Além de acelerar a descoberta de novas cepas, o projeto tem potencial para ajudar também em outras frentes.
“Poderemos, por exemplo, identificar se com determinados padrões a pessoa pode ter uma evolução melhor ou pior da doença. Hoje uma comorbidade prévia pode ser agravante, mas talvez no futuro não seja. A idade ainda é importante, mas não é um fator predominante como era nas primeiras cepas. A ideia de usar sistemas inteligentes é justamente alimentá-los o tempo inteiro com novos dados para que possam identificar novos padrões”, explicou.
O projeto foi iniciado recentemente. A expectativa é de que os primeiros resultados possam ser vistos em seis meses. Até lá, um dos desafios será conseguir uma base de dados robusta para mapear padrões. Por ora, os pesquisadores usam bancos de dados públicos e de alguns hospitais privados de São Paulo. “A ideia é expandir, fazer parcerias com outros Estados e outros hospitais.”
Esther afirmou que algumas dificuldades precisarão ser superadas. “Às vezes temos uma base com 4 milhões de registros, dos quais conseguimos usar efetivamente 500 mil. Os prontuários eletrônicos são importantes, são a base para nós, mas o próprio preenchimento, ou mesmo a forma como os sistemas são construídos, dificulta, porque são diferentes. É um desafio não só nosso, mas que é visto no mundo todo.”
Segundo ela, o objetivo da pesquisa é aprimorar condições de enfrentamento da pandemia nas mais diversas frentes. “A ideia é oferecer apoio para tomada de decisão em meio à pandemia, não apenas no tratamento, mas também sobre regiões com maior risco de infecção e até mesmo auxiliar para se fazer uma melhor distribuição de insumos pelo País.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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