No filme, dirigido por Oskar Roehler, Fassbinder é interpretado por Oliver Masucci. Tem problemas. O ator parece muito velho para o personagem assim que a história começa, quando Fassbinder é diretor de teatro e ainda não havia descoberto a potencialidade do cinema. Mesmo assim, o ator se assemelha muito ao personagem, em especial na intensidade doentia e na relação trágica mantida com o mundo.
Ao abraçar o cinema, com O Amor É Mais Frio que a Morte, em 1969, Fassbinder, vindo do teatro, descobre a arte ideal para se tornar o grande retratista da Alemanha do pós-guerra, o que fez em obras como O Casamento de Maria Braun, Lili Marlene e Lola. Ia do retrato social, como em Berlin Alexanderplatz, ao melodrama de Lágrimas Amargas de Petra von Kant. É artificial separar essas vertentes – a política estava no melodrama e vice-versa. Não se trata de confusão. Apenas admissão de que a experiência humana não cabe em rótulos, categorias ou gêneros cinematográficos. Fassbinder era caótico o suficiente para atravessar fronteiras sem qualquer dificuldade.
No entanto, o filme não se preocupa tanto com questões estéticas. Procura retratar a trajetória pessoal de um criador atormentado e nada romântico. Desde o teatro, Fassbinder mantinha atrás de si um grupo, uma corte de amigos e amigas, atores e atrizes, agentes, agregados e aproveitadores que viviam quase em comunidade. O consumo de álcool do grupo só poderia ser medido em hectolitros. Depois entrou em cena a cocaína que, consumida em doses industriais, precipitou o fim do artista.
De raspão, o filme passa pelo período efervescente da política europeia, com grupos extremistas como o Baader-Meinhoff, na Alemanha, sendo dizimados e seus líderes “suicidados” na prisão. Esse contexto tem repercussões na vida e obra do cineasta. Mas as tensões maiores de Fassbinder são vividas no interior do seu grupo fechado, com brigas por papéis em novos filmes, favores sexuais e atribuição de cotações aos atores, o que aumentava a rivalidade além do suportável. A disputa pela atenção de um artista transformado em guru de seita esfacela relacionamentos e cobra seu preço em vidas. O próprio Fassbinder era autodestrutivo e semeava o caos ao seu redor. Era algoz e vítima ao mesmo tempo.
Numa existência transformada em panela de pressão permanente, a centelha de gênio que o habitava o fazia trabalhar muito e rapidamente, com excepcional qualidade. Vivia a pensar, escrever e filmar, enquanto passava de um amante a outro. Funcionava turbinado por cocaína em tempo integral. O filme procura mimetizar, em sua estrutura, esse modo de vida lisérgico, destinado a ser muito breve, e trágico em seu limite. Em conformidade, a estética tende ao kitsch, é veloz, teatral, mas de teatro de cabaré.
Na composição desse impulso rumo ao abismo, não se pode esquecer o inconformismo do artista com a Alemanha, seu país, derrotado na guerra que provocou e causou a morte de milhões de pessoas. A ambição de Fassbinder – que não chegou a realizar – era retratar integralmente sua pátria, do passado ao seu tempo atual, por etapas e em filmes separados. Não foi possível completar o quadro, mas o que deixou é bem significativo.
Querelle, adaptado de Jean Genet, foi seu último trabalho e testamento – e não por acaso é a referência maior de Oskar Roehler, tanto visualmente quanto em citações de cenas. Não por acaso, também, é nesta obra que Jeanne Moreau interpreta a canção de Peer Raben, cujas palavras – “Todo homem mata aquilo que ama” – soam como epitáfio de Rainer Werner Fassbinder. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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