Nesta entrevista do Estadão, o ex-treinador aponta caminhos para tirar o time de uma fila sem títulos que já dura desde 2012 e diz que os clubes deveriam decidir tudo no futebol, e a CBF só deveria apoiá-los. Garante ainda que não tem lado na política e defende, com as informações que tem, que o atleta está mais seguro treinando e jogando, do que em casa fazendo churrasco com os amigos. Confira:
Você está 100% recuperado da saúde, da diverticulite que teve?
Sim, estou bem. Nada sério. Estou bem.
Você tem claro qual é o seu papel no São Paulo, sua nova função?
Tenho claro desde o dia em que me convidaram para assumir o posto. Não tinha outro tipo de função para eu fazer. Minha área agora é ser coordenador técnico. Aceitei. Estava bem claro para mim o que deveria fazer desde o começo. Por exemplo, entrevistei dez técnicos antes de contratar o Hernán Crespo. Falei com técnicos uruguaios, portugueses, espanhóis… Esta é uma das minhas novas funções. Queria saber como eles trabalhavam, como faziam a preparação do time, o que tinham estudado na carreira, se conheciam o São Paulo. Tinha de checar tudo o que interessava ao clube naquele momento com aquele profissional.
O que mais, Muricy?
Eu tenho de dar suporte ao treinador, ajudá-lo a conhecer o jeito do clube, fazer com que ele conheça o São Paulo, estar com ele o tempo todo e fazer uma ligação de Cotia com a Barra Funda, das categorias de base com o time profissional. E também tem o meu trabalho com a diretoria. Converso todos os dias com eles e também com os jogadores.
Você vai se meter na formação do time?
Não. Não falo nada de tática. Não tenho mais esse pensamento de ser técnico nem tenho mais essa postura. Ser treinador não é mais comigo. Não me meto na parte tática. Isto está no meu contrato até. No dia a dia, volto a lidar com o pessoal do CT. Isso é bem legal para mim, falar com o roupeiro, com as pessoas do clube. Gosto desta parte.
Qual é a sua avaliação do elenco?
Para avaliar, é preciso que o time jogue mais, é preciso ter mais partidas. A gente ainda está muito no começo desse processo para saber como o time está na real. No papel, o São Paulo contratou bem. Não temos dinheiro para nada e todo mundo sabe disso. Encontramos o clube muito mal financeiramente. Então, de acordo com o nosso orçamento, temos de ver os jogadores que conseguimos trazer. Acho que acertamos (contratou Miranda, Benítez, Eder, William). O ambiente está ótimo. Mas temos de esperar para avaliar melhor o time.
O que você pensa de jogador para compor elenco?
Ainda é preciso ter jogadores que completam o elenco. Se não tiver na base, tem de buscar fora. O calendário vai apertar. Dia 20 já tem Libertadores. Depois vem os jogos do Paulistão. Então, entendo que tem de ter plantel. A parte econômica dificulta neste momento. Para completar o elenco, temos de buscar sempre na base. E, se não tiver, temos de ir para o mercado. Já comandei times sub-11 e sub-12 e sei que algumas apostas não vingam. Então você é obrigado a contratar fora. Os nossos contratos na base são de quatro anos, em média, mas o jogador pode não virar. É complicado. Existe espaço para acertar, mas também existe espaço para errar. O futebol é assim.
Assim como, para errar?
Muitas vezes você busca um jogador e o empresário te oferece outro. Facilita a vida da chegada de um se você levar o outro. Às vezes esse outro é o que vai vingar no time. O futebol é assim. Não existe uma forma certa de fazer as coisas.
Como administrar o custo-benefício do Daniel Alves?
Não posso pensar no custo de um jogador. Ele já está no clube e o Daniel Alves é um dos melhores do São Paulo. É claro que prometeram para ele o salário que ganha e isso já está feito. O clube deve muito para ele (estima-se R$ 10 milhões) e o caso parecia deixado de lado. Não está mais assim. A dívida com o Daniel não é de agora. Estamos tentando solucionar, dando satisfação para ele e também para os seus agentes. Agora ele recebe satisfação de tudo. Dentro de campo, o Daniel parece que está começando na carreira.
Quanto tempo um treinador deve ficar no cargo para que possa mostrar serviço?
Acertamos no treinador (Crespo) e no seu trabalho no dia a dia. Ele e toda sua comissão são bem preparados. Temos de ver isso na prática. Eu penso que um treinador tem de ficar um ou dois campeonatos para ser avaliado, para mostrar o seu trabalho. Mas o trabalho tem de ser visto logo. Todo mundo sabe que depende de resultados. No Brasil e no mundo é desta forma. Os jogos mandam. Tem de saber que o resultado fala mais alto, mas tem de ter tempo.
O São Paulo parou no tempo? Não ganha nada desde 2012. Como isso aconteceu?
O São Paulo parou mesmo no tempo. Quando você começa a ganhar muito, você se perde. Tem de fazer todo mundo entender que o trabalho precisa continuar. Todos precisam fazer mais do que vinham fazendo. Você tem de convencer os caras disso. O São Paulo era primeiro em tudo, mas começou a ganhar e se acomodou. O São Paulo se acomodou e parou. Outros times vieram e começaram a ser iguais e até melhores. Passaram o São Paulo. Você precisa andar, ter os melhores jogadores, a melhor estrutura, a melhor tecnologia. Aí os resultados vêm. Tínhamos tudo isso muito bem feito. Mas se perdeu. Não se acha mais nada.
O São Paulo era referência…
O São Paulo estava na frente de todo mundo. Lembro que trouxemos o Adriano Imperador para ser tratado no clube, no Reffis, e conseguimos fazer um contrato com ele. Ele viu a estrutura. Agora, depois de perder tudo isso, o São Paulo paga o preço. Meu trabalho é tentar reverter esta situação e fazer o time ganhar.
Em quem você se espelha nessa nova função?
Em 2016, fui convidado pelo Neymar para conhecer a estrutura do Barcelona. O que mais me interessava lá era a base. Como era administrado tudo aquilo desde a base foi para mim uma escola muito boa. Tenho experiência e uma turma boa trabalhando comigo. Está tudo funcionando.
Como é sua rotina?
Eu vou para o CT todos os dias. Tem a coisa da covid-19. É complicado. Tomo muito cuidado. Chego no café quando não tem mais nenhum atleta por lá. Tomo café sozinho. Para ver os treinos, vou para a arquibancada num lugar separado ou fico atrás do gol. Quando quero falar com um ou dois jogadores, reúno esses atletas no auditório, que é um lugar espaçoso, e a gente fica um longe do outro. Também almoço sozinho. Tudo isso por causa da pandemia.
O São Paulo tem um protocolo específico para a covid-19?
Sim. No São Paulo tem teste para todo mundo às terças e quintas. Todos os funcionários são testados, todos os jogadores, todos os membros da comissão técnica. Não entra ninguém no CT. Nem dirigente nem torcedor nem ninguém sem ser testado.
Como você se virou nesse um ano de pandemia?
Desde que começou a pandemia, tenho meus costumes. Fico em casa. Não saio para nada. Sou rigoroso quanto a isso.
Você foi vacinado?
Vai chegar o meu dia de vacinação em breve. Está marcado para o dia 21 deste mês (abril). Tenho 65 anos. Tenho um app que me mostra tudo isso.
Que avaliação você tem do Brasil no combate à covid-19?
É difícil falar de um assunto que você não tem autoridade, não domina. Mas entendo que estamos perdidos desde o começo. Veio o primeiro bicho e agora chegou o segundo (as variantes do vírus). Não se tem muito conhecimento de nada. Nada é 100% sobre a covid. Nenhum protocolo é 100% garantido ou seguro. Eu, por exemplo, não viajo com o São Paulo. É difícil para mim neste momento. Só se for de avião fretado. Mesmo assim, não tenho nada para fazer lá. Vou ficar no hotel comendo e bebendo. Não vou. Mas vou ao Morumbi. Isto é de clube para clube. O São Paulo é muito seguro e rigoroso nesse sentido. Tem muita preocupação com a covid e sua contaminação.
Mas você não acha que o futebol está forçando para jogar? Não deveria parar?
O futebol tinha de contribuir mais pelo exemplo, é isso que entendo que estão falando. Falou-se muito dos protocolos. Eu entendo que o futebol é mais cobrado para dar exemplo. Os jogadores estão mais seguros quando estão com a gente. Se eles ficarem em casa, vão fazer churrasco, vão reunir amigos. Se fosse para parar o futebol, teria de parar no Brasil todo. Parar com tudo por um tempo. Seria algo para o bem de todos. Se todo mundo pudesse se reunir, eles poderiam tomar essa decisão. Mas ninguém fez isso. Cada um busca o melhor para si.
Então é melhor treinar.
Sim. Porque esses caras ficam no nosso controle. Estamos também cuidando dos familiares dos atletas. Eles levam informações para suas casas. Informações dos médicos e a gente vai recomendando, mandando mensagens pelo celular. Todo mundo é educado em relação à covid. Os atletas do São Paulo têm conseguido levar os treinos e os jogos sem se comprometer. A mesma coisa é feita na base.
Você perdeu alguém para a covid-19?
Como todo mundo, perdi amigos. Na minha família, graças a Deus, não perdi ninguém. Desde o começo da pandemia, a gente se preparou. Eu e minha mulher fomos morar na praia. Lá tem menos gente. Mandei os meus três filhos para Ibiúna. Lá todos ficaram bem. Ficamos distantes por muito tempo. Deixei de ver meus filhos e meus netos. Foi duro demais. Mas o distanciamento era necessário. Fiquei muito longe deles, morando um ano na praia. Só voltei depois de acertar com o São Paulo.
Quanto tempo uma revelação deve ficar no clube? Pergunto isso por causa da venda do Brenner para o futebol dos EUA.
O Brenner teve uma oportunidade única. O dinheiro era muito bom. Não tinha outra oferta. Cada jogador é um jogador neste sentido. O clube tem de tentar vender da melhor forma. Os times vivem disso, precisam desse dinheiro. É preciso saber se o jogador vai dar mais frutos, se vai conseguir ganhar títulos. Não há uma forma certa para tratar disso. Futebol é assim mesmo. Pode ser que ele faça diferença nos campeonatos, mas você não tem essa segurança. E todo clube tem contas para pagar.
Quem você gosta de ver jogos no Brasil, já sabendo que você continua com o hábito de acompanhar tudo que pode (durante a entrevista, por telefone, estava vendo Porto e Chelsea, pela Liga dos Campeões)?
Tem muita gente boa jogando no Brasil. Acho que a gente melhorou muito. Gosto de ver o Arrascaeta, do Flamengo. Tem também o Daniel Alves. Gosto de ver o Maicon lá no Grêmio, ele domina o meio de campo do time. Tem o Bruno Henrique, também do Flamengo. No Santos, gosto de ver o Marinho e o Soteldo. Tem o Luiz Adriano no Palmeiras. O futebol brasileiro tem bons jogadores.
Você acha mesmo?
O nível melhorou muito, principalmente na parte tática. Não tinha antes onde o treinador se capacitar. Agora tem na CBF. A CBF faz vários cursos nesse sentido. Tem o intercâmbio, que aumentou muito. Erramos nos técnicos de fora lá atrás, mas começamos a trazer alguns bons, treinadores mais capacitados. Então, entendo que melhoramos na parte tática. Não dá para discutir a parte técnica. Técnica está lá na Europa. Se todos os brasileiros (que atuam fora) voltassem para o Brasil, aqui teria o melhor futebol do mundo. Há uma safra nova também de técnicos brasileiros. Falta amadurecer. Eles não são experientes. E não se comanda um time somente com atitude. Tem de ter experiência.
Você acredita nesses novos treinadores?
Eles vão ficar mais experientes e vão melhorar. A base também está funcionando da mesma forma. O Brasil abriu o futebol para o conhecimento.
Quem são os bons times do Brasil?
São esses que todos falam. São Paulo, Palmeiras, Grêmio, Atlético-MG e Flamengo.
Você acha que os clubes deveriam tomar as rédeas do futebol brasileiro?
Eu conheço todos lá na CBF. Conheço o (presidente) Rogério Caboclo, o Tite, o Juninho Paulista, a turma toda que toca o futebol. Eles são competentes. Mas quem tem de mandar no futebol são os clubes. Sempre defendi isso. Sabemos que os clubes dependem de ajuda financeira. Mas quem tem de decidir as coisas do futebol são os clubes. Eles deveriam ser responsáveis por tudo que é decidido. A CBF tem um papel de apoiar.
Mas isso não acontece.
Não tem união. Há muita divisão, racha. Não há consenso. Seria ideal se houvesse. Mas cada um vê somente o seu lado.
Do que você sente falta no futebol?
Sinto falta do meu pai. Ele jogava na várzea. Adorava futebol. Sinto falta do Telê Santana. Falo dele sempre que posso no CT. São os valores dessas duas pessoas que me formaram. Meu pai era uma pessoa simples (era feirante) e ele faz muita falta. Me ensinou o valor do futebol, das coisas. Não podemos só ser jogadores, temos de ser cidadãos. O jogador precisa ter caráter. Não é só jogar bola, só ser bom dentro de campo. Dentro de campo, o Telê repetia muitas coisas para formar o atleta, mas também ajudava na formação do caráter dele. Pegava no pé até de quem dava carrinho.
Você perdeu seu pai cedo?
Meu pai morreu aos 56 anos. Eu estava jogando no México. Estava numa partida do Campeonato Mexicano. Ele teve um enfarte e caiu. Depois do jogo, no mesmo horário, fui avisado pela comissão técnica. Mas naquela época não dava para chegar rápido ao Brasil. Tinha de ver avião, ir para outro país… Não cheguei a tempo do enterro do meu pai. O futebol te arranca isso. Essas duas pessoas me fazem muita falta. O meu pai me ensinou muito. E tive também um outro cara que me ajudou quando tinha 17 anos, que foi o Pedro Rocha. Ele era o professor e eu era o aluno. Depois virou meu amigo. Sujeito diferenciado. Ter caráter é muito importante no futebol. Ter postura e educação. Só de ficar perto do Pedro Rocha, você já melhorava. Depois ele se transformou nos dez melhores jogadores do mundo.
Qual é sua opinião sobre o Brasil?
A política do Brasil não funciona. Há muita corrupção. Eu sempre falei isso. Não gosto de política nem de políticos. Não tem cara bom. A maioria faz mal para o País. Não tenho lado. Se o Brasil entrasse num acordo, seria o melhor país do mundo. Era preciso ser correto com o povo e não usar o povo para se eleger. É tudo mentira o que eles falam. Eles cuidam deles próprios e da turma deles. Isto me irrita demais. Você vê lugares menores no mundo com mais condições… Eu sei disso porque viajei muito com o futebol. Isso de ter 20 milhões de pessoas passando fome me deixa maluco. A fome é a pior coisa do mundo, principalmente num país como o nosso. Mas é um País que só cresce à noite. Hoje são 20 milhões de pessoas passando fome. Amanhã podem ser 30 milhões. Cada um só pensa na sua turma. Eu ouço desde pequeno que o Brasil vai ser um país grande. Faz 50 anos que ouço isso. Todos que entram, com raras exceções, não fazem nada pelas pessoas. A fome só é combatida, em parte, por causa da solidariedade das pessoas e dos empresários. Isso é muito legal no nosso País. Mas acho que deveria ser o governo a distribuir alimentos para as pessoas, deveria distribuir comida. Os caras estão passando fome. Isto é terrível. Dá muita revolta você ver crianças passando fome no Brasil.
Que legado você quer deixar no futebol?
A gente sempre se orgulha de alguém que nos inspira. Tive o meu pai e o Telê Santana. Eu sempre dizia que queria ser como Telê. Eu sei porque as pessoas gostam de mim. É pela minha credibilidade. Sou correto com todos. Sou correto em tudo o que faço. Tem de ser correto sempre. E passo isso para os meus filhos. Isso tem de se aplicar também ao futebol. O cara tem de ter atitudes corretas. Eu sempre trabalhei pelos lugares onde estava. Pelas pessoas. Sempre me dediquei ao trabalho honesto. É isso que quero deixar.
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