Trabalho de maior ousadia da carreira do cineasta e fotógrafo, a mistura de thriller e melodrama está disponível na Amazon Prime, recriando os crimes de Pedro Machado Lomba Neto (1981-2005), o “Bandido Gato”, chamado Pedro Dom. Uma carga de ação e estratégia militar, ligada ao combate às drogas, pontua toda a frenética narrativa. Silveira escreveu essa dramaturgia numa sala de roteiristas combinando talentos de Fabio Mendes, Higia Ikeda, Carolina Neves e Marcelo Vindicatto – e a dirigiu ao lado de Vicente Kubrusly.
Quem viu seu mergulho no universo prisional da série 1 Contra Todos (2016 a 2020) ou seu périplo pela favela em Era Uma Vez… (2008) nota na história de Dom, vivido por Gabriel Leone, um traço autoral – que vem lá da experiência com Coutinho. Mas seu traço autoral se descortina mais forte em outra via: a da paternidade.
“Tive cerca de 12 anos de convivência com o pai do Pedro, Victor, que me contava coisas fortes sobre o filho e sobre a realidade do crime em que ele estava. No fim da vida, ele falava que estava morrendo por uma droga lícita, o cigarro, mas falava da relação com o filho com amor, acreditando que a mídia havia transformado o garoto em um monstro”, disse Silveira ao Estadão, em referência ao pai de Dom, o policial civil aposentado Luiz Victor D. Lomba.
“Não estamos contando mais uma história sobre tráfico, mas sobre a entrada da cocaína no Brasil e como ela modificou o Rio de Janeiro e as famílias afetadas pelo vício. Victor bateu na porta da produtora Conspiração dizendo ter uma história importante para contar. Era a história ímpar de um policial que atuou como infiltrado no combate à droga, mas tinha um filho que se tornou não só um viciado, mas um dos bandidos mais procurados do Rio”, continua o cineasta.
Silveira não quis receber Victor quando ele chegou na sua produtora, cedendo apenas quando notou que o policial não iria desistir. Mas, já no projeto, conseguiu grande empenho de Leone e Flávio Tolezani, escalado para interpretar Victor, em saltos no tempo – da década de 1970 para o fim dos anos 1990, quando Pedro, já viciado, começa a roubar mansões e coberturas luxuosas, e avança até a primeira metade dos anos 2000.
“Victor diz uma frase bonita: ‘A gente leva uma vida toda para saber se errou ou acertou’. São como dois troncos fortes de madeira, um pai e um filho, que se amam, mas quase não conseguem se abraçar. Mas a vontade latente é um abraço”, diz Tolezani. “Estamos em uma época em que a família era muito patriarcal e machista, mais ainda do que é hoje. Isso determina muito a relação do Victor com o filho homem. Ele tenta proteger esse filho, nem sempre com muita habilidade, e o excesso no esforço de tentar cuidar termina nesse resultado.”
Perseguições, trocas de tiro e, sobretudo, esquemas de fuga modulados pelo perigo elevam ao limite da tensão as condições de temperatura e pressão de Dom, que estreou em cerca de 200 territórios, em um emaranhado de idiomas, que vai do inglês ao tamil, falado pelos habitantes da Índia meridional e do norte do Ceilão.
De um lado, na série, há a reconstituição de operações do jovem Victor (vivido por Filipe Bragança) em seu ingresso na prática da lei, sob os auspícios do agente Arcanjo (Wilson Rabelo). Mergulhador exímio, Victor se infiltra em um morro do Rio para ganhar a confiança do traficante local (Fábio Lago), testemunhando como o narcotráfico espalhou seus tentáculos.
Do outro lado, acompanha-se o passo a passo da entrada de Dom no submundo, consumindo cocaína de modo compulsivo em uma favela até integrar um bonde (formado por Raquel Villar, Ramon Francisco, Isabella Santoni e Digão Ribeiro), sendo extorquido por um policial corrupto, o Sargento Figueira (André Mattos).
“Um dado muito importante, para além do vício, era a relação do Pedro com a adrenalina. Por uma questão química, ele não sentia dor. Fazia parte do código de conduta dele a disposição de ir atrás do que provocava a sensação de prazer da adrenalina”, diz Leone, que filmou utilizando lentes de contato para reproduzir os olhos azuis de Dom, enxugando palavras numa interpretação que valoriza as angústias do personagem. “Breno não filma de olho na câmera. Filma de olho na gente, no humano, nos nossos sentimentos. A proximidade dele com a gente proporciona um sentimento de introspecção e a capacidade de trabalhar com o silêncio.”
Sempre acompanhado por Victor, mesmo de longe, o Pedro Dom real chegou a ser preso em 2002, por porte ilegal de arma. Foi solto graças a um laudo do Hospital Psiquiátrico Heitor Carrilho, que atestou dependência química. Foi encaminhado para tratamento, mas abandonou o contato com os médicos.
Quando começou a assaltar, deixou o apartamento em que morava com o avô, para onde tinha ido depois da separação de Victor e de sua mãe (vivida por Laila Garin), e se refugiou em imóveis alugados na Zona Sul do Rio. Acabou na Rocinha, onde se tornou cúmplice do tráfico local e, de lá, partiu para a Vila dos Pinheiros. Foi morto aos 23 anos, após um embate com a PM, que começou no Túnel Rebouças e terminou em um cerco em um prédio na Lagoa.
“Como conceito, essa é uma história que se fecha, por todo mundo saber o final. É uma história que chegou a um fim trágico para essa família, mas, para confirmar como isso vai ser elaborado na série, em quantas etapas, temos de aguardar”, diz Malu Miranda, chefe de Conteúdo Original para o Brasil da Amazon Studios, perguntada pelo Estadão acerca de possíveis novas temporadas. “Estou muito confiante e feliz com a série, pois fui assistente de direção do Breno, nos anos 1990, e fico impressionada de ver o quanto ele foi amadurecendo como contador de histórias, ao longo da filmografia dele. Era um fotógrafo que dirigia publicidade e hoje, como diretor, lida com muitos gêneros em Dom.”
Filmada integralmente em locações, dispensando estúdios, pois Silveira aprendeu, há anos, novamente com Coutinho, que a representação da vida precisa transpirar vida em seu lugar de ação, a série Dom conta com o prestigioso trabalho de direção de fotografia de Adrian Teijido, que trabalhou também em O Palhaço (2011) e foi elogiado recentemente em mostras no exterior por seu trabalho em Marighella, de Wagner Moura, e Medida Provisória, de Lázaro Ramos.
“Na época em que eu era fotógrafo, e estava trabalhando muito nessa função, Teijido era o cara com quem eu mais concorria. Juntos, no mesmo set, a gente tem um bate-bola maduro. Eu nunca me entrosei tanto com um fotógrafo como acontece com ele”, diz Silveira.
“Teijido tem cultura cinematográfica e maturidade com a câmera. Isso conta, sobretudo em um projeto grande como esse, talvez o maior que eu já tenha feito. Para mim, não existe nada mais potente que o drama. É o que me interessa, é o que gosto de fazer. Por falar de um contexto de violência, não há como fugir da ação. Mas cada capítulo tem um tom. Você só vai entender a lealdade do pai do Dom no meio da temporada. Eu sempre entrei em cinema para me emocionar. Desde cedo, fui muito envolvido com o drama, com histórias que nos façam sair do cinema pensando. A minha procura como artista é, realmente, emocionar. E, quando você tem emoções sinceras, elas são universais”, finaliza o diretor.
Mulheres humanizam personagens
Dom usa a força feminina e a coragem das mulheres como vetores essenciais à humanização das figuras vividas por Gabriel Leone e Flávio Tolezani. E as duas forças que mais impelem o assaltante em sua jornada pela criminalidade são Jasmin (Raquel Villar) e Viviane (Isabella Santoni). “Percebo que Jasmin vem de um histórico de violência: o pai bebia e batia nela e na mãe. Na série, ela vive tentando escapar desse passado, mas acaba caindo no mesmo lugar. Se hoje o mundo é machista, na época era ainda mais”, diz Raquel.
Isabella concorda que as mulheres que entram em rota de colisão com Dom são sobreviventes. “É um universo complexo e muito agressivo, onde o crime dá um poder que elas não teriam na vida. Viviane tem uma revolta muito grande dentro dela. É agressiva a forma como ela vai aos assaltos. Tem uma vontade de destruição que acaba sendo autodestrutiva pra quem está ao seu redor, ao mesmo tempo”, diz.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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