Comuns nos Estados Unidos, os endowments são fundos de longo prazo, formados por doações. O dinheiro é investido no mercado e a universidade só usa o que rende, para ações como melhorar laboratórios, apoio à pesquisa e bolsas. A ideia é que o fundo seja perene: quanto maior o bolo de doações, maiores os rendimentos e mais projetos são apoiados. Os fundos não substituem o orçamento público, mas servem para ações complementares. No Brasil, uma lei de 2019 deu diretrizes para criar endowments, mas o governo vetou incentivos fiscais a doadores, o que é visto como obstáculo às iniciativas.
Nos últimos meses, universidades estaduais paulistas avançaram em seus endowments. A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por exemplo, abriu o canal de doações há quatro meses. A USP, que já tem fundos patrimoniais ligados a escolas como as de Engenharia, Administração e Medicina, espera consolidar o fundo de toda a universidade até o fim do ano. E a Universidade Estadual Paulista (Unesp) iniciou contatos com potenciais doadores para colocar a medida em prática.
As estratégias para engajar doadores vão de publicações nas redes sociais à facilidade de pagamento. Os apoiadores milionários, em geral ex-alunos, continuam bem-vindos, claro, mas os grupos também investem na “captação de varejo” de quantias modestas, como R$ 20. Transferência por Pix e planos de assinatura, como uma “Netflix das doações”, encurtam o caminho. Além de engordar o cofre, pequenas contribuições vindas de muitos bolsos dão legitimidade aos fundos.
“Temos recebido doações de valores pequenos, gente perguntando se pode doar um pouco todo mês”, diz Andreia Marques, gerente de desenvolvimento institucional do Fundo Lumina, da Unicamp, que já captou R$ 500 mil de 65 doadores.
Transferências por Pix representam um terço do total. Os fundos patrimoniais das universidades “surfam” no destaque ao trabalho científico na pandemia e, ao mesmo tempo, na reação contrária ao discurso anticiência e aos cortes de verbas pelo governo Jair Bolsonaro. “Hoje doar para a universidade é quase um ato de resistência.”
Pedagoga formada pela Unicamp, Helena Whyte, de 60 anos, diz admirar universidades do exterior que têm poupanças com doações volumosas. Ela foi uma das primeiras doadoras do Lumina. “O fato de o governo (federal) negar a ciência e colocar empecilhos para quem está na pesquisa me fez ficar preocupada.” Helena espera que os rendimentos do fundo priorizem alunos da periferia.
Pandemia
Na USP, o impulso para criar o fundo permanente veio da crise sanitária, diz o reitor Vahan Agopyan. A emergência elevou a participação de empresas e da sociedade civil em projetos para a covid-19, como respiradores. Quase 2 mil pessoas físicas doaram em um programa que arrecadou R$ 4,4 milhões. “Desde uma professora que doou todo o salário até uma pessoa que deu R$ 50”, diz o reitor. “Percebemos que a falta de um canal de doações não permitia interação com a sociedade.”
Agopyan espera abrir o fundo patrimonial da USP a doações ainda este ano. E prevê participações até de quem não se formou na USP, mas apoia a universidade pública. O know-how para esse tipo de investimento vem de dentro. Foi na Escola Politécnica da USP que um dos primeiros fundos bem-sucedidos do Brasil surgiu, em 2012. “Não havia modelo jurídico, tivemos de estruturar do zero. E a dificuldade foi enorme para atrair os primeiros doadores”, diz Tiago Ziruolo, presidente do Amigos da Poli. Hoje, ele comemora o montante de R$ 36 milhões e a aplicação de R$ 1 milhão em dezenas de projetos, de drones a equipamentos de saúde.
Os Amigos da Poli contam com doações vultosas. E, ao longo dos anos, diversificaram canais para alcançar até alunos de graduação. O engenheiro mecânico Gabriel Borrasca, de 26 anos, por exemplo, é doador frequente – de pequenas quantias e muito trabalho. Ele deposita R$ 50 mensais no fundo, pelo sistema de cobrança automática, e também é voluntário, em um trabalho de gestão de outras 160 pessoas que trabalham gratuitamente para o endowment.
“Comecei a doar como aluno.” Ele teve um projeto apoiado pelo fundo na época da faculdade e conseguiu até viajar para competir no exterior – então, veio a vontade de retribuir.
A experiência na Poli incentiva outros grupos, como o de exalunos da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia, que em julho lançou o Conecta EAUFBA. “O poder aquisitivo no Nordeste é diferente do Sudeste”, diz a presidente, Luciana Ferreira. “Pensamos que, desde o início, não poderíamos contar só com poucas pessoas. Precisamos pulverizar, engajar mais, mesmo que com menor valor.” O grupo planeja publicações de “embaixadores” nas redes sociais e contato com formandos. Com modelo de doações por assinatura – e cancelamento imediato -, espera chegar a R$ 1 milhão no fim do ano.
Na Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio), o fundo patrimonial criado no fim de 2019 com apoio da Associação dos Antigos Alunos (AAA) tem em seu conselho gestor personalidades como o exministro da Fazenda Pedro Malan e o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga. Agora, a AAA mapeia os 200 mil estudantes – a maior parte deles anônimos – que passaram pela PUCRio. “Buscamos uma mudança de cultura onde cada um doa o que quiser”, diz Ricardo Lagares, presidente da AAA. O foco é dar bolsas a alunos de baixa renda.
“A popularização é importante porque traz legitimidade para a organização”, diz Paula Fabiani, CEO do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis), que apoia instituições a criar seus fundos patrimoniais. Capturar o doador pequeno, completa ela, também é estratégico. “Ele pode se transformar em um grande doador. Alguns vão despontar como empreendedores”, prevê.
Cultura. O caminho para construir uma cultura de doação no Brasil, porém, ainda é longo. Esbarra na falta de incentivos fiscais, na desconfiança da população sobre o uso dos recursos e até no temor de que o governo se desobrigue de investir. A crise impõe ainda mais dificuldades. Mostrar ações concretas, mesmo que pequenas, decorrentes dos fundos, é uma das estratégias para engajar.
Nos EUA, onde endowments têm incentivos há mais de um século, doações a universidades alcançaram US$ 49,5 bilhões (R$ 257 bilhões) no ano fiscal de 2020, segundo o Conselho para Avanço e Suporte à Educação. No país, mesmo antes da graduação, os jovens são estimulados a participar da comunidade de ex-alunos. Doar é fácil: Harvard, por exemplo, tem mecanismos online de contribuição recorrente, com mínimo de US$ 25 – e já juntou US$ 41,9 bilhões nas últimas cinco décadas. Incentivos fiscais e a chance de dar nomes a prédios impulsionam mais – no Brasil, batizar espaços públicos é um processo mais complicado. Em 2020, houve alta da participação de pessoas físicas que não são ex-alunos nos EUA.
O movimento Black Lives Matter, antirracista, também teve papel importante. O CEO da Netflix, Reed Hastings, e a mulher, por exemplo, deram US$ 120 milhões a universidades dedicadas ao ensino de negros.
Sem incentivos a doadores
A lei dos endowments, de 2019, deu segurança jurídica para criar fundos patrimoniais nas universidades, mas jogou um balde de água fria: o veto a incentivos fiscais para doadores é considerado um entrave. Hoje, só um quarto das fundações de apoio a universidades já iniciou o processo de criação de endowments, revela levantamento do Conselho Nacional das Fundações de Apoio às Instituições de Ensino Superior e de Pesquisa (Confies), com 50 fundações. A maior parte delas (78%) considera que incentivos fiscais são o quesito mais importante para alavancar os fundos. Apenas três já receberam doações.
Como esses fundos não podem, por lei, ser criados na mesma conta da universidade, as fundações são um dos canais. “Não tem fundo endowment sem incentivo, não adianta fazer curso, treinamento”, critica Fernando Peregrino, presidente do Confies. O Ministério da Ciência e Tecnologia tem feito capacitações para que as instituições de pesquisa criem endowments. Procurada sobre como superar a falta de incentivos, a pasta não se manifestou.
Em 2019, o Ministério da Educação (MEC) propôs o Futurese, programa que previa captar recursos privados, dentre outras ações. A ideia, alvo de críticas e pouco discutida com as instituições, não saiu do papel. Procurado, o MEC não comentou.
Reitor da Universidade Federal do ABC (UFABC), Dácio Matheus diz que as federais ainda engatinham nessa área. “A falta de incentivos fiscais é fator limitante para colocar energia em um fundo patrimonial.”
Para Paula Fabiani, CEO do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis), a falta de isenção de impostos afasta quem ainda não se convenceu a doar. O Idis tenta reverter o veto no Congresso. Apesar das barreiras, diz ela, cresce o interesse de universidades por consultorias para criar endowments. O estudo do Confies indica que 95% das fundações pretendem criar fundos.
Em debates com a comunidade acadêmica, ainda pesam contra os fundos o temor de que as doações desobriguem o governo de investir. Dirigentes se preocupam em deixar claro que o endowment não pode ser usado para despesas com professores ou contas – são verbas complementares. “Uma universidade de pesquisa precisa de investimento governamental”, diz Vahan Agopyan, reitor da USP.
Também afastam o risco de interesses privados se sobreporem aos da universidade. “Respondemos sempre se há conflito de interesse em qualquer avaliação específica de projeto”, diz a diretora da Poli-USP, Liedi Bernucci. Membro do conselho deliberativo do Amigos da Poli, ela destaca a participação de docentes nas avaliações dos projetos apoiados.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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