Com passos tranquilos e roupas discretas, o homem de 79 anos, que mantém uma rotina interiorana na cidade gaúcha, foi receptivo ao ser abordado pelo Estadão, na quinta-feira. Só pediu para não gravar entrevista, nem ser fotografado. Afirmou que, desde 2003, vive em Livramento, após ter feito o registro como brasileiro nato, por ser filho de brasileira, o que impede o Brasil de extraditá-lo.
Narbondo foi condenado à prisão perpétua pela morte dos quatro militantes ítalo-uruguaios Bernardo Arnone Hernández, Gerardo Gatti, Juan Pablo Recagno Ibarburu e María Emilia Islas Gatti de Zaffaroni. Pouco antes de ser interrogado pela suspeita do assassinato de Batalla, Narbondo cruzou a fronteira e fixou residência definitiva em Sant’Ana do Livramento, fronteira oeste do Rio Grande do Sul.
No Uruguai, o coronel é acusado de integrar o esquadrão secreto que sequestrou e matou em Buenos Aires o senador Zelmar Michelini e o ex-presidente da Câmara de Deputados, Héctor Gutiérrez Ruiz, em 1976. Na visão do advogado criminalista Leonardo Sagrillo Santiago, mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), não parece possível que ele seja preso e cumpra pena no Brasil. “E também não pode ser extraditado por ser brasileiro nato”, afirma.
Segundo Santiago, a decisão sobre a natureza do julgamento cabe ao Supremo Tribunal Federal, conforme o artigo 9º do Código Penal Brasileiro, que obriga o condenado a reparar dano cometido em outro país. “Essa questão da natureza da infração foi tema de debate no STF recentemente no caso Cesare Battisti, quando se confirmou que essa é uma decisão exclusiva do Supremo”, acrescentou.
Durante a conversa com o Estadão, o coronel condenado destacou que o objeto do processo já faz 45 anos e, para ele, trata-se de uma questão política e não jurídica. Em reportagem publicada nesta semana no site jornalístico Matinal, ele disse ser um militar que cumpria ordens em uma época de guerrilhas.
Na cidade de 76 mil habitantes, Narbondo mora com sua esposa, uma policial uruguaia aposentada. Com amigos dos dois lados da fronteira, ele vive em uma casa de classe média, com dois carros populares na garagem e um espaço dedicado ao cultivo de plantas nativas.
Antes da residência atual, ele já passou por pelo menos dois endereços perto da fronteira, um deles a duas quadras do Uruguai. Como cidadão brasileiro que é, o coronel transita livremente pelas ruas de Livramento, inclusive para ir ao consulado uruguaio, onde faz sua prova de vida para continuar recebendo sua aposentadoria do Exército do país vizinho.
Quando questionado sobre sua atuação na ditadura, ele desconversa e diz que “o mundo de hoje é outro”. Segundo o advogado de Narbondo, Julio Favero, seu cliente nunca se declarou culpado. “Todos esses julgamentos são de cunho político. Não há nenhuma prova documental que o vincule de forma clara a crimes de tortura. Ele está vinculado a uma cadeia de mando”, afirma.
Anos de chumbo
No Uruguai, a ditadura durou de 1973 a 1985. Apesar de ter tido um forte caráter militar, o país foi governador sempre por um civil – que funcionava como um peão das Forças Armadas. Nos 12 anos de regime, foram 465 assassinatos e mais de 170 desaparecimentos. A tortura e a violação de direitos humanos se tornaram parte do cotidiano de quem contestava a repressão.
O jornalista Néstor Chaves, de 74 anos, lembra bem daquela época. Ele conta que, em 1973, estava cobrindo uma manifestação contra a ditadura, em frente à sede do jornal Diário Popular, na principal avenida de Montevidéu. “Eles nos pegaram, nos levaram para o Departamento Cinco e nos torturaram”, conta.
Segundo Chaves, no local foram realizadas várias práticas de tortura, entre elas a conhecida como “submarino”, quando a vítima é imobilizada e afogada em um balde de água. Em seguida, ele foi conduzido a uma penitenciária, onde permaneceu por um ano e meio. Depois, Chaves foi levado para uma quadra de basquete, também na capital uruguaia, onde presenciou o ensinamento a recrutas das práticas utilizadas.
O jornalista parece conformado com o fato de viver a poucas quadras do coronel. “Tenho de me conter e confiar na Justiça. Não podemos gerar ódio, devemos aprender com tudo isso, o ser humano tem de seguir adiante.”
Raúl Silva Cotto, de 67 anos, afirma que viveu os dois lados da história: foi torturador e torturado. Recrutado como militar no final dos anos 60, quando a repressão ainda não tinha começado, se apaixonou por uma mulher que, sem saber, era do grupo guerrilheiro Tupamaros – que operava contra a ditadura.
“Eu só soube que minha mulher era dos Tupamaros quando ela foi presa e eu fui obrigado a torturá-la”, conta. Além da esposa, o irmão também fazia parte do grupo e foi torturado pelo regime. “Quando prenderam o meu irmão, me levaram até a unidade e eu reconheci a voz dele, que estava encapuzado, imobilizado em um cavalete de ferro molhado. Ali, passou por várias sessões de choque elétrico. Eu torturei o meu próprio irmão”.
Questionado sobre arrependimento, Cotto diz que sim. “Como não vou me arrepender? Mas ou você fazia ou morria.” Quando descobriram que ele era marido e irmão dos guerrilheiros, começaram a torturá-lo também. “São marcas que tenho até hoje. Muitas vezes, eu não sabia onde estava, porque me colocavam um capuz e faziam o ‘submarino’. Após a tortura, muitos eram executados de várias formas para a ocultação dos cadáveres.”
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