Considerava a fotografia uma cicatriz no corpo, uma poesia. Não acreditava em diferenças das linguagens, mas, sim, na empatia – quando tal palavra ainda não estava na moda – das mensagens. Não gostava de definir seu trabalho porque não acreditava em definições. Polêmico, crítico e instigante, faleceu prematuramente, aos 62 anos, em 2009. Mas, usando o senso comum, como em todo e qualquer bom artista, a sua obra sobrevive e nos ajuda a relembrar a grandiosidade do seu trabalho.
Parte de sua imensa produção está em uma exposição, que não poderia ter melhor título que Espíritos Sem Nome, com abertura no sábado, 1º de maio, no Instituto Moreira Salles de São Paulo – inicialmente prevista para o mês de março, a abertura foi adiada em razão da pandemia de covid-19.
Concebida em parceria com o Instituto Mario Cravo Neto, a mostra foca na produção fotográfica do artista, linguagem que consagrou sua carreira. A seleção apresenta as principais séries produzidas ao longo de sua trajetória, entre as décadas de 1960 e 1990. No total, são exibidos cerca de 322 itens, incluindo, além de fotos, vídeos, desenhos, documentos, álbuns e instalações.
Sem seguir um formato cronológico, a exposição mostra o processo de desenvolvimento da linguagem e da poética do artista, cujo arquivo fotográfico integral de negativos e cromos está sob a guarda do IMS, em regime de comodato. Para seu filho, Cristian Cravo, presidente do conselho curador do Instituto Mario Cravo Neto, é justo considerarmos esta exposição uma retrospectiva: “É uma homenagem para um artista de imensa liberdade e muito intenso”, afirma ao jornal O Estado de S. Paulo. “Ele sempre tentou dar conta de uma pluralidade poética visual e ser coerente em seu trabalho.”
Em 1975, o artista sofreu um grave acidente de carro, que deixou suas pernas imobilizadas por quase um ano. O brusco acontecimento provocou também uma guinada estética em sua produção. Impossibilitado de se movimentar e fotografar na rua, Cravo Neto começou a criar obras inspiradas no momento de reclusão que vivia – como os desenhos feitos a partir do raio X de seu fêmur quebrado, exibidos na mostra -, além de retratos dos amigos e parentes que o visitavam.
Fotografar a família, por sinal, seria um hábito de toda sua vida, como evidenciam as várias imagens presentes na mostra. “A imobilidade foi uma experiência transformadora na qual ele teve que trabalhar com a experimentação”, relata Christian.
Após o acidente, o artista aprofundou seu trabalho no campo da fotografia, especialmente com a produção de imagens encenadas, feitas em seu estúdio. A partir da década de 1980, o trabalho de Cravo Neto ganharia ainda mais fôlego, especialmente com duas séries, Eternal Now e Laróyè, presentes na mostra do IMS e ambas publicadas em livros posteriores. A primeira reúne imagens em preto e branco feitas em seu estúdio, em um fundo infinito. São retratos de modelos com elementos que remetem ao universo simbólico de Salvador e do Candomblé, religião na qual foi iniciado no começo dos anos 2000.
“Mario Cravo Neto foi um pensador da imagem e através da imagem”, provoca Luiz Camillo Osorio, professor da PUC-Rio e crítico de arte, curador da mostra. E, relembrando uma crítica da Stefania Bril, escrita nos anos 1980, Luiz Camilo Osorio afirma: “Ele é (ou era) tantos artistas em um só.”
Camilo Osorio também traça um paralelo entre a obra de Mario Cravo Neto e a música. : “Ele criou um ritmo orquestrado em cada etapa de sua vida como artista. Ao mesmo tempo em que mergulhou na estrutura visual.”
Influenciado pelo contato com o etnógrafo Pierre Verger, Cravo Neto buscava retratar a espiritualidade e o sincretismo de sua cidade natal. A mostra traz desde uma série de fotos nas quais o artista registra ex-votos, esculturas devocionais em madeira, motivado por Lina Bo Bardi, até imagens dos rituais do candomblé, que Cravo Neto frequentava, como descreve em relato: “Programo a minha máquina de antemão para obter aquela subexposição característica das minhas fotos e depois me lanço de corpo inteiro (e de alma também) na festança: me incorporo nela, e ela me incorpora. Focar na objetiva? Nem pensar. O foco se faz no passo, na dança: um pouco mais perto, um nada mais longe. É caça meio alta para afinar a focalização. A imagem é também fruto desta parte performática do fotógrafo.”
Espíritos Sem Nome era o título que ele já havia pensado para o seu livro Laróyè, publicado em 2000. Agora, ele se traduziu em nome desta retrospectiva que conta seu percurso narrador, narrativo e criador.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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