Rosel Antonio Beraldo e Anor Sganzerla*
A brilhante “sociedade do espetáculo”, uma bela expressão cunhada por Guy Debord (1931-19940), continua a todo vapor entre nós, por onde quer que andemos, por onde quer que olhemos ou visitemos, o espetáculo está na moda, há dele para todos os gostos, sejam eles imagináveis, ou mesmo aqueles inconfessáveis, a cultura do excesso intoxicante, devastador em muitos aspectos faz diuturnamente suas transgressões, o espetáculo daquilo que é banal, daquilo que não tem importância para o nosso futuro parece ter muito mais valor, recebe doses cavalares de importância e ares de verdade suprema; o espetáculo dispersa, ele tem um poder avassalador de encobrir as nossas consciências, ele em última instância desconstrói a já nossa frágil coesão social; por outras palavras, o espetáculo oculta a realidade, mina as forças, nesse terreno movediço todos somos a caça.
Já vimos muitos espetáculos na história humana, pensemos no império romano, seu apogeu e sua fatídica queda, um império por muitos séculos tido como invencível, se rompeu em pouco tempo e assim muitos outros deles seguiram a mesma trajetória, passaram do luxo ao lixo num piscar de olhos, todo e qualquer império sofre de uma mesma doença, que pode adquirir diversos nomes, isto é, da soberba, da arrogância, nele todas as linhas vermelhas são ultrapassadas sem nenhum pudor, odeia-se o momento presente por ser ele carregado de contradições, por isso a fuga constante, o refúgio em banalidades ,leviandades e trivialidades. Em todos os espetáculos históricos verifica-se uma ruptura, em todos eles há um tendão de Aquiles, quase imperceptível, mas ele está ali e quando é atingido por um ou outro objeto ele muda radicalmente a humanidade, ele rompe o tempo.
Leonardo Boff (1938-), um grande teólogo vivo entre nós, num de seus últimos livros, ou seja, “O cuidado necessário”, nos entrega uma ótima reflexão sobre o cuidado, palavra essa que se perdeu ao longo da história humana e hoje quando ela deveria ser a regra, é de longe uma grande exceção, quem de nós já não foi cuidado algum dia na vida, os primeiros a nos cuidarem foram os nossos pais, a existência humana possui dois pontos extremos que exigem um cuidado sem igual, são eles, o nascimento e o morrer, duas realidades onde a vulnerabilidade é intensa, repassando as páginas da nossa vida são incontáveis aqueles e aquelas que nos cuidaram, independentemente da idade que temos hoje somos a todo instante cuidados e assim o seremos até o nosso último suspiro; na extensa engrenagem existencial o cuidado é uma ferramenta muito útil e mais restauradora.
Nesse livro, Leonardo Boff elenca uma extensa lista daquelas situações que exigem cuidado, em muitas delas um cuidado mais do que redobrado e também urgente, a falta de cuidado e uma exagerada busca por satisfação deixou o Planeta, como tudo aquilo que vive, bem como todas as pessoas numa situação perigosa; houve um tempo em que nos introduziram goela abaixo, certas afirmações de que éramos os únicos a terem direito, os únicos a reivindicarem toda e qualquer benesse que o Planeta pode oferecer, mas como tudo onde somente o ser humano impera, vemos que isso é uma ilusão, ou seja, nem todos ao longo do tempo foram favorecidos, nem todos puderam e podem usufruir daquilo que a Terra dá gratuitamente, no jogo perverso da modernidade, absolutamente tudo tem um preço, mas absolutamente nada tem valor; hoje sentimos na pele o que é não ter cuidado.
O cuidado começa com a vida, as coisas, as pessoas, a nossa cidade, nossas casas, aquilo que de imediato nos rodeia, alargando o tema, pensemos no cuidado que devemos ter com a coisa pública, os locais históricos que visitamos, hoje mais do que nunca o cuidado com o meio ambiente é uma palavra de ordem, sem um ambiente saudável nossa chance de sobrevivermos diminuirá em muito, o progresso é sim muito importante para todos, mas progresso sem consciência, sem cuidado pode se tornar uma arma imprevisível ao longo do tempo e quantas vezes o progresso a qualquer custo, ao longo do caminho se mostrou irresponsável, com consequências catastróficas para todos. Em muitas situações fomos dormir com belos sonhos e quando acordamos notamos que tudo virou um pesadelo, o tempo mostrou assim claramente que não fomos precavidos como deveríamos ter sido.
Bioeticamente, o cuidado é hoje uma das palavras mais caras a todos nós, ele nunca desapareceu, apenas foi jogado para escanteio em muitas situações, nos últimos tempos o cuidar adquiriu novas conotações, um novo impulso, observa-se uma intensa campanha em todas as idades para que ele seja assumido com força total, afinal estamos, queiramos ou não, ligado a tudo, absolutamente tudo nos diz respeito, ninguém na teia da vida está isolado. O não cuidar tem feito estragos consideráveis na vida de todos, que o diga a guerra absurda da Ucrânia e todas aquelas menores que ninguém de nós se lembra, pensemos naqueles que tem queimado livros sagrados de diferentes religiões, as imagens chocantes de pessoas naufragando no Mediterrâneo, pessoas de todas as idades cruzando fronteiras. Nosso mundo, apesar de louváveis e raras intenções necessita de muito mais cuidado; ter cuidado não é mera retórica, é um ato consciente e benéfico, ele também é um espetáculo no sentido que deixa tudo mais leve, todos podem dele se beneficiar, todos podem realizar.
*Rosel Antonio Beraldo, mora em Verê-PR, Mestre em Bioética e Especialista em Filosofia pela PUC-PR; Anor Sganzerla, de Curitiba-PR, é Doutor e Mestre em Filosofia, é professor titular de Bioética na PUCPR.
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