Desde setembro de 2020, indígenas reivindicam no Ministério Público Federal a delimitação de suas áreas; quase um ano depois, Funai ainda não foi no local
* Jéssica Procópio e Paloma Stedile
Na quinta-feira (5), a procuradoria regional do Ministério Público Federal (MPF) em Pato Branco emitiu o ofício nº 296/2021, que prorroga mais uma vez o prazo para que seja feita uma delimitação física na Terra Indígena (TI) de Mangueirinha.
De acordo com a assessoria do MPF, o inquérito teve início ainda em setembro de 2020, quando os indígenas da reserva apresentaram uma carta ao ministério solicitando a revisão de sua área.
Diante do pedido, o órgão tem solicitado ao escritório da Fundação Nacional do Índio (Funai) em Guarapuava que realize estudos técnicos no local para que, posteriormente, faça a demarcação das terras.
No documento enviado a regional, o MPF solicita que, no máximo em 20 dias, seja comprovado uma nova interlocução com as lideranças indígenas.
Apesar de o MPF pedir uma nova conversa, os indígenas afirmam nunca terem sido procurados pela Funai.
O despacho e o ofício, na íntegra, podem ser visualizados no final desta matéria.
Entenda a situação
De acordo com os documentos do MPF, os indígenas entraram em contato com o órgão federal reclamando sofrer invasões em suas terras. Segundo eles, seus vizinhos, fazendeiros, estão desrespeitando as divisas para ampliar suas plantações e granjas.
“De três anos para cá começaram a invadir e entrar na terra. Nós queremos colocar os marcos onde era. Se eles (a Funai) não vierem, pretendemos nós mesmos fazer nossas cercas e começar a plantar e cuidar das granjas”, comenta Ambrozio Kaigang, uma das lideranças da terra.
De acordo com o indígena, desde que o MPF solicitou a demarcação a Funai não foi até o local. Ele conta ainda que, há alguns anos, a fundação esteve na área, mas acabou não colocando as marcações. “Em 2017 ou 2016 a Funai veio para rever as divisas, mas queriam fazer por onde está e nós, naquela época, não aceitamos, porque ficaria muita terra fora, terra essa invadida pelos granjeiros”.
“Se a Funai quiser demarcar por onde está hoje, acho difícil aceitarmos, porque não concordamos. Como que vamos perder nossos pedaços de terra, que estamos preservando? 70% da reserva é preservado. Isso sem falar que nós temos muitas crianças, jovens que vão precisar mais tarde plantar. Então nós já estamos em falta de terra para mecanizar”, completou.
Até essa sexta-feira (6), segundo o cacique da TI em Mangueirinha, João Santos Luiz Carneiro, nenhum funcionário da Funai havia entrado em contato com representantes da reserva.
Ao Diário, a Funai informou que o processo de demarcação física na terra indígena está em fase de definição dos limites de área.
“Devido à pandemia de covid-19, foi editada a Portaria 419/PRES/2020, prorrogada pela Portaria nº 183/PRES/2021, que restringe o contato entre agentes da Funai e indígenas ao essencial, o que impactou o planejamento das etapas de trabalho de campo do órgão. Por fim, a Funai reforça que as medidas restritivas diante da pandemia são essenciais ao enfrentamento da covid-19 entre os indígenas, posto que evita o contato de possíveis contaminados com as comunidades”.
Conflito de interesses
“Note-se, adiante, que no item 25 dos presentes autos consta cópia do Boletim de Ocorrência nº 2021/432785 lavrado a partir de suposta ameaça sofrida pela liderança indígena em razão de divergência estabelecida entre indígenas e um dos proprietários das áreas contíguas aos limites da Terra Indígena, fato que robustece os alertas ministeriais de há muito direcionados à Funai pela via formal de que a falta de marcos e placas a delimitar fisicamente a área é causa de instabilidade política e social e, não bastasse, dá ensejo à prática de crimes ambientais”, discorre o item 2 do despacho 588/2021 do MPF.
Sem demarcação física, os conflitos no local vêm aumentando. De um lado, os indígenas reivindicam por aquilo que dizem ser seu por lei, de outro, fazendeiros constroem suas granjas em locais onde acreditam ser seu, também por direito de lei. E ai, discussões, brigas e ameaças se tornam cada vez mais comum, criando assim, um conflito maior.
Denúncia ambiental
Além da questão territorial, um outro ponto questionado pelos indígenas e apresentado a reportagem do Diário é a ambiental. Segundo eles, nascentes estão sendo secas por fazendeiros e margens de rios tornando-se depósito para madeira. “Tudo era cabeceira de água, secaram os banhados para plantar. Tem um rio que passa, o rio Simão, eles destocaram e empurraram tudo as madeiras para dentro do rio. Aquilo também é uma grande desordem”, reflete o líder Ambrozio Kaigang.
Para Wilfried Schwarz, agente profissional do Instituto Água e Terra (IAT), limpar no entorno de uma nascente ou de um rio, de maneira a eliminar a vegetação, traz reflexos negativos para a água, não só do município como da região. “Quando ainda fazem o plantio com adubo químico, tratamento cultural das plantas com inseticidas afetam a qualidade da água. Então, além de diminuir a quantidade de água disponível, também vai gerar um prejuízo para a qualidade da água, a medida que essas intervenções são feitas”.
O que dizem os fazendeiros
O Diário entrou em contato com dois fazendeiros, com propriedades próximas à TI. Sem se identificar, os dois informaram ter uma boa relação com os indígenas, construída há, ao menos, quatro décadas.
De acordo com um dos fazendeiros lindeiros a reserva, “a relação com os indígenas sempre foi tranquila. Sempre tivemos a mesma divisa, limpa e preservada. Nossa relação aqui, é de respeito”, contou.
Um outro agricultor, também com parte de sua propriedade fazendo divisa com a Terra Indígena, explica que as demarcações territoriais nunca foram um problema.
Com relação aos descuidos com o meio ambiente, um dos agricultores fez um comentário. “Lamentavelmente isso acontece. Se é em área indígena, não sei dizer. Em nossa área existe a mata ciliar e a reserva legal, como prevê a lei. Mas, não são só os fazendeiros os vilões dessa história. Na área em que fazemos divisa com eles, algumas vezes já tivemos que ir lá durante a noite, devido a incêndios. Com a vegetação e o clima seco, está todo dia ocorrendo queimadas na reserva, eles mesmos (indígenas) estão colocando fogo na vegetação para abertura de novas áreas, e algumas vezes o fogo ameaça passar a divisa e invadir nossa lavoura. Por ser uma reserva indígena acredito que deveria haver uma maior preservação e cuidado com a natureza”.
Uma briga que não vem de hoje Essa situação da terra indígena de Mangueirinha, referente às demarcações, não é algo atual. É o que diz Antonio Cavalcante de Almeida, professor de Sociologia do IFCE – Campus Fortaleza. Ele — que possui pós-doutorado em Desenvolvimento Regional pela UTFPR (Campus Pato Branco); doutorado em Ciências Sociais [Antropologia], pela PUC-SP; e mestrado em Sociologia Política, pela UFSC — acompanha a Terra Indígena de Mangueirinha desde 2004, quando era docente da então Faculdade de Pato Branco (Fadep), e fazia visitas técnicas com os acadêmicos para conhecer a realidade daquela região. “A questão da TI [que possui em torno de 17 quilômetros quadrados] é algo histórico, que vem desde as retomadas dos anos 1970, no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e no Paraná. Ela envolve uma série de situações. Funai, Serviço de Proteção aos Índios (SPI). No caso de Mangueirinha, os conflitos se iniciaram entre as décadas de 1970 e 1980, sendo que as discussões nunca foram fáceis”. O docente, que mantém contato com os indígenas daquela região, lembra que, a partir de 2018, ouviu muitos relatos que “essa tensão aumentou muito mais, referente à área de demarcação federal, que é a terra indígena”. Cavalcante, também, afirma que existe o Decreto-Lei Estadual nº 64, de 2 de março de 1903, no qual reconhece oficialmente a TI de Mangueirinha como território tradicional dos índios Kaingang. “Nessa época, havia um discurso governamental de vazio demográfico no Paraná, sendo que essas terras pertenciam ao Estado. Dessa forma, havia a necessidade de abertura de estradas, usando os indígenas como mão de obra para isso. Eles aceitaram, porque muitos deles viviam e conviviam tanto nos campos de Palmas, como nos campos gerais de Guarapuava”. Cristian Ricardo Carneiro — indígena natural da terra indígena de Mangueirinha e acadêmico de História pela Universidade Estadual do Centro-Oeste —, completa que “houve relatos dos mais antigos que essa terra foi comprada por meio desse serviço prestado pelos indígenas ao Governo do Estado, da construção da estrada que corta a reserva no meio, entre Chopinzinho e Palmas”. Entretanto, passado algum tempo, ele conta que uma grande madeireira adentrou numa parte da reserva. Ali se iniciou uma briga intensa entre os índios Kaingang de Mangueirinha, liderados pelo então cacique Ângelo Kretã, contra essa empresa. “Kretã começou a briga pelas terras contra essa empresa. Ele foi um líder de Mangueirinha, do Paraná e do Brasil. Ele lutou e unificou a reserva [Chopinzinho, Coronel e Mangueirinha]. Mas esse conflito levou a morte do nosso líder”. |