Não se engane, porém, de pensar que Hamlet: 16 x 8 é uma peça autobiográfica. Passagens da vida do ator aparecem na dramaturgia, mas a mola propulsora vem de um livro alheio, Hamlet e o Filho do Padeiro: Memórias Imaginadas, publicado em 2000 pelo diretor Augusto Boal (1931-2009). Nele, o criador do Teatro do Oprimido estabelece conexões entre a história de seu pai, um padeiro português do subúrbio carioca, e o encanto do futuro artista pelos palcos, passando pelas experiências coletivas do Teatro de Arena e a devoção pela obra-prima de Shakespeare sobre o príncipe da Dinamarca. “Descobri o livro em 2011 e fui trabalhando aos poucos, tudo amadureceu com tempo”, conta Bandeira. “Até que veio a pandemia, aquela loucura de ficar em casa sem ter o que fazer, e resolvi finalizar um texto para montar, apoiado em alguns capítulos.”
Com o projeto estruturado, o artista recorreu a Marco Antonio Rodrigues, o Marcão, um fiel parceiro de sua trajetória profissional. O primeiro encontro dos dois se deu no espetáculo Verás que Tudo É Mentira, em 1995, um embrião do Grupo Folias, fundado dois anos depois pela dupla e outros amigos embebidos pelas expressões de um teatro popular e engajado. Só que o diretor, com sua fúria criativa, apontou caminhos nem imaginados pelo intérprete. “O livro é muito mais potente que isso e podemos expandir o enfoque, até porque sua vida e a de Boal se relacionam em diversas questões”, sugeriu Marcão.
Bandeira levou um susto, mas confiante na inquietude do parceiro se permitiu dar corda ao nunca imaginado. O diretor e, a partir daí, coautor do texto, conectou as experiências de teatro de grupo de Boal e o papel de Bandeira no Folias e na Companhia do Latão e o enfrentamento político do velho Bandeira de Mello e a repressão sofrida pelo teatrólogo e seus exílios na Argentina, em Portugal e na França. Também foi sublinhado o fato de os dois terem crescido diante da imagem de pais fortes que poderiam servir de sombra e, assim, volta a aparecer a relação com Shakespeare. “Existem pais combativos, como o do Boal e o meu, e pais destrutivos, como o do Hamlet, cujo fantasma precisa ser exorcizado”, compara Bandeira.
Hamlet: 16 x 8 foi levantado em menos de dois meses em um outro exílio. Bandeira, Marcão e suas famílias passaram parte de junho e julho em um sítio em Paraibuna, no interior paulista. Acordavam cedo, ensaiavam à exaustão e brigavam, sim, brigavam porque a intimidade veio à tona. “Eu lutei por um caminho lírico, queria trabalhar a indignação com amor, e o Marcão, muito mais raivoso com tudo o que acontece no País, foi cedendo aos poucos e comprou minhas ideias, uma prova de que estamos mais maduros”, ironiza o ator.
A estreia também marca o fim de mais um exílio para Bandeira – e, aqui, não se trata só da clausura pandêmica. Em 2017, o artista descobriu um câncer no rim que, depois de uma operação, deveria ter sido totalmente extirpado. Fortes dores no estômago, durante uma sessão da peça O Patrão Cordial, meses depois, mostraram que parte do tumor abrira espaço para uma metástase. “Atravessei um processo de vida e morte, emagreci quinze quilos, me despedi várias vezes da minha mulher e do meu filho, mas hoje vejo o câncer até como um presente, tudo ganhou um outro olhar”, declara ele, que volta ao palco depois de quase quatro anos. Em meio ao tratamento, Bandeira gravou participações na série Carcereiros, da Rede Globo, deu aulas no Célia Helena Centro de Artes e Educação e, há um mês, trabalhou em outra série da emissora, Aruanas. “Enfrentei medos, exílios e tudo desencadeou em um espetáculo que ganha a cena na pandemia, o que não deixa de ser um ato de rebeldia e de resistência pela vida.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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