Toda terça, às 10 da manhã, Fortaleza junta-se, em encontro virtual, a outros 20 consultores que integram o Centro de Contingência. O grupo é basicamente um comitê formado por luminares da Saúde Pública recrutados para sugerir maneiras de segurar, em todo o Estado, os efeitos da maior pandemia dos últimos 100 anos. Todos trabalham – e muito – como consultores sem remuneração, com exceção do médico João Gabbardo, contratado pelo governador para o cargo de coordenador executivo do grupo.
Não se pode dizer que São Paulo, com mais de 130 mil mortes, tenha se destacado no controle da covid-19 em meio à péssima média nacional. Mas pode-se afirmar que, sem a atuação – e muitas vezes pressão – desses cientistas, o Estado teria uma catástrofe ainda maior. Cálculos do infectologista Julio Croda, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e integrante do Centro, mostram que, sem a quarentena que recomendaram no início de 2020, o número de mortes e de ocupação de UTIs poderia ser dez a cem vezes maior só na Grande São Paulo.
Nesses meses de trabalho, os membros do Centro de Contingência precisaram encarar duas frentes no combate à pandemia, ambas duríssimas. Uma delas foi a agonia de tentar conhecer uma doença nova, em uma taxa de aprendizado que avançava muito mais lentamente do que o número de contágios e mortes. A outra foi lidar com um governo premido pelas necessidades dos setores produtivos, que pediam a flexibilização das regras e a reabertura dos serviços – o que algumas vezes resultou em clima tenso com o governador e em desavenças internas. “Agora estamos de bem, pacificados. Mas tivemos momentos difíceis”, lembra o infectologista Marcos Boulos, de 75 anos, professor da Faculdade de Medicina da USP (e o sênior do grupo)”.
Hoje, cada reunião do centro começa com uma projeção que dá um panorama da doença no Estado, com as variações da última semana, mês e ano e com comparativos entre os surtos de julho de 2020 e março de 2021. Com base nessa numeralha, os médicos calculam o quanto o contágio está subindo ou descendo nos últimos dias e horas e deliberam, às vezes em debates acalorados, sobre medidas que pretendem recomendar. Em alguns casos, discutem demandas feitas por áreas do governo. Semana retrasada, por exemplo, o tema era o futebol, que queria voltar a receber público.
Essa máquina é alimentada por grupos de apoio que produzem dados de ocupação de UTIs, novas internações por dia, óbitos por semana, novos casos por cem mil habitantes a cada 14 dias divididos por região e isolamento social, medido a partir de informações de deslocamentos dos celulares. “É um trabalho que envolve milhares de pessoas, dos funcionários dos municípios que atualizam dados às empresas de Big Data que prestaram consultoria voluntária para dar agilidade ao sistema de dados”, diz o epidemiologista e psiquiatra Paulo Menezes, professor da USP e há seis meses coordenador do Centro de Contingência.
Na paralela dessa usina de dados, os médicos do grupo fuçam pesquisas e artigos internacionais e trocam experiências com médicos de outros países. Algumas vezes, formam subgrupos de estudo sobre temas específicos – já houve alguns para decidir sobre escolas, bares, visitas a presídios, eventos esportivos, cultos.
Outras vezes, a contribuição vem do que eles veem na linha de frente. Em janeiro, o infectologista Benedito Fonseca, da FMUSP e coordenador do laboratório da covid do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, sequenciou a primeira amostra positiva da variante P.1 (identificada originalmente em Manaus) em paciente e avisou rapidamente os colegas do Centro. “Em pouco tempo percebemos que a nova variante estava aumentando paulatinamente, tanto que hoje é predominante em todas as regiões do Estado.” Também foi dos primeiros a notar o aumento da presença dos mais jovens nas UTIs. Há duas semanas, mais uma percepção: o aumento da incidência grave da doença em gestantes e puérperas.
Vespeiro
De modo geral, os integrantes do Centro descrevem as reuniões como um ambiente de colaboração e troca de aprendizado entre colegas renomados. O que tensiona a convivência é que, no fim das contas, as principais sugestões para conter a pandemia invariavelmente mexem num vespeiro. “E por que é um trabalho tão difícil – e já foi até pior? Porque as recomendações nunca são boas, sempre são de medidas que têm um impacto social e econômico gigantesco”, resume Menezes.
Os médicos do Centro de Contingência, claro, são afetados pela pandemia. Menezes ficou meses longe da mulher e do filho de 4 anos, para evitar risco de contágio. Croda perdeu parentes e cuidou de um tio que permaneceu internado por três semanas na UTI. Rodrigo Angerami, professor de Epidemiologia e Doenças Infecciosas da Unicamp, não encontra os pais há quase dois anos e vê os dois filhos trancados em casa – além, claro, de lidar com o drama de seus pacientes. E assim por diante.
Apesar da alta carga de trabalho, os integrantes do Centro nunca perdem do horizonte o fato de que são apenas consultores – e cabe ao governador ouvir outras áreas e decidir o que fazer. No começo da pandemia, os médicos chegaram a trabalhar em modelos de lockdown. Mas foram avisados pelo governo de que, sem apoio do governo federal e do Exército, seria impossível bancar algo assim. Nos momentos mais críticos, fizeram várias reuniões por semana, quatro delas com o próprio governador, à noite. Vez por outra, os encontros começam com integrantes do governo reportando o desespero de algum setor para abrir ou avisando que Doria decidiu acatar um pedido.
Ao longo dos meses, apareceram discordâncias entre os próprios médicos, sempre em torno de um tema nevrálgico – as medidas de isolamento social. As recomendações de Centro saem sempre das reuniões às terças e são levadas ao Comitê pelos dois coordenadores, Paulo Menezes e João Gabbardo. Depois, em entrevista coletiva, o governador anuncia as novas medidas.
A certa altura, os médicos entraram em modo revolta porque Doria comunicava flexibilizações contrárias às suas diretrizes e usava a frase “seguindo recomendações do Centro de Contingência”. Teve início um ruidoso mal-estar, os grupos de WhatsApp pegaram fogo.
Alguns dos médicos suspeitaram de que os coordenadores não estavam levando adequadamente suas recomendações e pediram reunião presencial com o governo. O vice-governador, Rodrigo Garcia (PSDB), esclareceu que não era isso – Doria tomava decisões mesmo sabendo que os médicos eram contrários. O mal-entendido foi desfeito e o climão acabou quando Doria começou a usar frases como: “a despeito de o Centro de Contingência ser contrário, vamos fazer”. Entre as medidas que aterrorizam infectologistas estava, por exemplo, a abertura de templos religiosos.
No começo do ano, dois episódios embolaram de novo o meio de campo. Um deles gerou o maior desgaste com o governo desde o início do Centro de Contingência. Em dezembro, curvas já apontavam para um aumento dos estragos feitos pelo vírus. Os médicos defenderam que era hora de restringir tudo de maneira rígida, incluindo festas de fim de ano e viagens de férias. Em janeiro, entraram em conversas frenéticas com o governo, avisando: “fecha, o sistema de saúde não vai aguentar” – e aí foram ouvidos. Nos meses seguintes, de fato, as UTIs chegaram ao máximo de ocupação.
O outro imbróglio se deu no mês passado, quando os médicos souberam pela imprensa que o governador havia autorizado a Copa América no Estado. Desesperados, bombardearam o governo com dados que esmiuçaram os perigos da competição. Doria, então, decidiu voltar atrás e vetá-la. Como o Estado sempre se manteve em platô elevado – as taxas de contágio e de mortes nunca desabaram -, os cientistas ainda correm incansavelmente nessa partida cheia de prorrogações. E há a conclusão generalizada de que, sem um plano nacional, como ocorre em todos os países que conseguiram controlar a pandemia, São Paulo não teria feito muito mais. “O País foi uma lástima porque nosso líder maior joga contra. Aí não tem jeito. É como entrar numa guerra com o marechal abrindo fronteiras para os inimigos”, diz Marcos Boulos.
Também leitor voraz, o infectologista Rodrigo Angerami aponta semelhanças entre essa rotina frenética no Centro de Contingência e outro livro: Um Diário do Ano da Peste, de Daniel Defoe. “Porque é um relato duro e detalhado de uma rotina em meio a métricas e caracterizações de óbitos, à explosão de casos e de como as pessoas lidam de maneiras diferentes com os números.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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