Há várias escolhas a serem feitas num documentário. Por exemplo, haveria a possibilidade de entrevistar colegas de trabalho do personagem. Ou especialistas em televisão ou comunicações, que contextualizassem sua trajetória. Porém, o filme se limita a material de arquivo e a entrevistas com o próprio apresentador. Assemelha-se mais a um perfil que a uma biografia. Uma escolha, repito. Documentário não é reportagem nem precisa obedecer às regras do jornalismo. Mesmo quando trata de jornalistas.
Cid Moreira fala de Cid Moreira e relembra sua carreira. Ao mesmo tempo, apresenta seu cotidiano de homem bem posto na vida. A sauna diária, os banhos de banheira, os exercícios na academia doméstica, o jardim bucólico na residência magnífica, o estúdio montado em casa – tudo aquilo que o dinheiro pode comprar e facilita a vida de alguém chegado aos 93 anos, e em ótima forma para a idade.
Como Cid Moreira tem mania de arquivista – e espaço para guardar tudo não lhe falta -, a cineasta teve a tarefa facilitada. Ele possui fotos antigas e agendas nas quais anota tudo do seu dia a dia, de uma ida ao dentista a um compromisso profissional e a assinatura de um contrato. Nada escapa a esse historiador de si mesmo.
No começo da linha do tempo de uma longa carreira, Cid relembra do início em 1944, aos 17 anos, na Rádio Difusora de Taubaté, onde chega por mero acaso. Queria um emprego de contador e o colocaram como locutor por causa da voz bonita. Em 1951, muda-se para a Rádio Mayrink Veiga e para o Rio de Janeiro. O vozeirão grave é aproveitado também em comerciais e cinejornais. Faz o Jornal de Vanguarda, na TV Excelsior. E, em 1969, começa junto com o Jornal Nacional na Rede Globo, onde permanece longos 27 anos, dividindo a bancada com colegas, mas sendo sempre a voz de referência de um telejornal que, em seus melhores tempos, chegou a 80% de audiência no País.
Nem tudo é glória. Há tropeços. E dramas, mencionados de raspão. O maior deles, a morte da filha, perdida para as drogas, merece uma menção rápida. Como se o assunto fosse doloroso demais para se alongar.
E a questão política. O Jornal Nacional é criado em plena vigência do AI-5, ápice da ditadura militar. Qual a posição de Cid Moreira a respeito? Nenhuma. “Sou apolítico, detesto política”, diz, com todas as letras. “Eu só chegava à emissora para ler o jornal, não era o editor. Apenas o apresentador.” Era apenas uma voz. O conteúdo era escrito por outras mãos.
Mas mesmo uma voz pode não ser neutra. A prova, ele mesmo dá. Em 1994, Leonel Brizola era governador do Rio e queria tirar a Globo da cobertura do carnaval, o que levou a emissora a veicular um editorial contra o governador em seu principal veículo, o Jornal Nacional. Quem o leu? Cid Moreira. Brizola pediu direito de resposta e ganhou na Justiça. Quem o leria? Cid Moreira, claro.
Moreira relembra o fato e diz que, na emissora, ficaram preocupados. Como ele leria a réplica de Brizola? Disse para não se preocuparem. Leu o libelo brizolista da forma mais “monocórdia” possível, aplainando um texto original cheio de farpas contra a Globo e seu proprietário, Roberto Marinho. O veterano locutor sabia que um texto não é apenas aquilo que diz, mas a maneira como é dito. Questão de ênfase, ou de sua ausência. Esse é um dos pontos mais reveladores de um documentário no qual o personagem é dono da única versão sobre sua trajetória.
O fim do ciclo na Globo é triste, como não poderia deixar de ser. O filme reproduz a despedida de Cid Moreira que, junto com seu colega Sérgio Chapelin, é substituído pela dupla William Bonner e Lillian Witte Fibe. Mas não tem nem tempo de pensar em aposentadoria. Logo é convidado para emprestar sua voz à leitura do Novo Testamento. Transforma-se, por assim dizer, na voz oficial de Deus no Brasil e obtém imenso sucesso com a venda de Cds.
Claro que o dono dessa voz, tão presente na vida brasileira, poderia ser apresentado de outra forma. Na aparência, essa vida plácida e bem-sucedida é mostrada de maneira quase oficial, consentida. No entanto, é preciso ficar atento para as poucas fissuras e contradições que brotam de discurso tão empostado. Cabe ao espectador percebê-las.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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