“Edna traz, em suas marcas, experiências que se entrelaçam com a tragédia histórica do Brasil e que, tão cruelmente, têm a ver com o nosso presente. Um presente de feridas abertas e questões cruciais que ainda não fomos capazes de resolver como povo”, explica o cineasta de 43 anos ao Estadão, contabilizando ainda outras duas conquistas: a ida de Cinema Novo para a Netflix, nas próximas semanas, e a ida de sua recente ficção Breve Miragem de Sol (2019) para a Amazon Prime em países da Europa, da África e da Oceania. “Apesar das diferenças, os personagens de ‘Miragem de Sol’ e de ‘Edna’ compartilham a solidão dentro de um território destruído”.
Revelado mundialmente com Rocha Que Voa (2002), sobre as vivências cubanas do diretor baiano Glauber Rocha (1939-1981), seu pai, Eryk tem no currículo um rol de protagonistas masculinos, como os craques juvenis de Campo de Jogo (2014), e o cantor Jards Macalé, de “Jards”, pelo qual ele conquistou o troféu Redentor de melhor direção no Festival do Rio, em 2012. Agora é a vez dar o protagonismo a uma mulher, cujas andanças pelo País vão cruzar com episódios históricos de violência institucional. Seu foco aqui é Edna, nome (ou seria um pseudônimo?) usado por uma camponesa nascida no Maranhão que viveu a Guerrilha do Araguaia (1967-1974) e a Guerra dos Perdidos (1976). Diários escritos por ela desenham uma cartografia de afetos com ecos existenciais inéditos nas abordagens do cineasta.
“Eu fui criado por uma mulher (a diretora Paula Gaitán), com duas irmãs. Então, a energia feminina sempre fez parte de uma forma muito visceral na minha vida. Creio que o feminino, além de ser um gênero, é uma força cósmica. Tem muito a ver com sensibilidade, com novas formas de sentir o mundo. E isso, para mim, é o cinema”, comenta Eryk. “Lembro quando Edna nos mostrou alguns dos seus cadernos intitulados ‘Histórias de minha vida’, com seus escritos. Quase sussurrando, ela nos disse: ‘Os cadernos são minha forma de desabafar… Num lugar onde não tenho a quem contar tudo que vi e vivi’. Nessas páginas, Edna trazia seus poemas, numa mistura de memórias pessoais e memória política do País. A melodia da sua voz e seu pensamento projetavam uma coexistência de tempos, entrecruzando memória vivida, desejo e fabulação. Então creio que o feminino é um rio, um oceano. Tem a ver com fluxo, com o indizível, com um saber que também agrega intuição”.
Escalado para a competição Burning Lights do Visions du Réel, Eryk atribui a forma de sua mais recente pesquisa sobre a gramática do documentário à memória de Edna em sua relação solitária com o tempo e o espaço. “A arte pode ser a aventura de experimentar a imaginação do outro. Por exemplo, quando Edna diz: ‘Sonho sair daqui para um lugar não sei aonde ’. Esse verso foi uma guia para pensarmos as nuances da montagem e a partitura do filme.”
Mais do que uma investigação sobre as recordações que Edna guardou do Araguaia e dos enfrentamentos contra o regime militar, o longa de Eryk é um estudo de território, usando uma estrada como uma metonímia de Brasil. “Na Rodovia Belém-Brasília (ou Transbrasiliana), vemos diariamente dezenas de caminhões passarem transportando madeira e tudo aquilo que é possível de ser extraído da terra e da floresta. A Transbrasiliana, a exemplo de tantas outras estradas do norte do País, foram abertas durante a ditadura militar, que rasgou e violou a floresta amazônica, com milhares de quilômetros de estradas, matando milhares de indígenas por doenças, destruindo suas terras, abrindo caminho para o desmatamento. Esse era o chamado ‘projeto de desenvolvimento’ no início dos anos 70. No caso da Transbrasiliana, ela está situada no sul do Pará, uma das regiões mais violentas do País. É uma região de muitos conflitos, massacres e disputas de terra. É como se o Brasil coubesse dentro desse território. Então existia durante as filmagens um clima muitas vezes de alta tensão, de risco. Acredito que isso está presente na própria atmosfera do filme”, explica o diretor.
Resiliente, Edna entrou no caminho de Eryk em 2015, durante a pesquisa de Guerrilheiras, ou para terra não há desaparecidos, peça teatral idealizada pela atriz Gabriela Carneiro da Cunha e dirigida por Georgette Fadel. “Uma das camadas da peça eram os testemunhos das mulheres camponesas que ficaram próximas das guerrilheiras no Araguaia. Edna era uma delas”, conta o diretor.
“Nesse projeto, me cabiam as invenções audiovisuais que iriam compor a peça. Desde o início, ficamos muito impressionados pela presença, pela voz e pela força do relato de Edna. Ouvimos ela dizer coisas tão fortes com doçura e, ao mesmo tempo, com dor e sofrimento. Meses antes, Gabriela já havia me contado com muita emoção sobre Edna, e, quando terminou esse encontro, ficamos todos encantados, sonhando um filme com ela. Foi a Gabriela que plantou a semente inaugural desse projeto, além de ter participado como roteirista, pesquisadora e assistente de direção. E podemos dizer que Edna foi a ligação, pois proporcionou esse fértil encontro entre o teatro e o cinema.”
Neste momento, Eryk e Gabriela dizem estar vivendo uma nova aventura, codirigindo o filme A Queda do Céu. “É um projeto inspirado livremente no livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert, que também filmamos na Amazônia, mas, agora, com os Yanomami da comunidade do Watoriki”, diz Eryk. “O filme está atualmente em fase inicial de montagem e traz um novo mundo ali.”
Comentários estão fechados.