Duterte legaliza violência policial em guerra ao crime nas Filipinas

Antes de se tornar presidente das Filipinas, em 2016, Rodrigo Duterte era idolatrado em Davao, uma cidade costeira na Ilha de Mindanao, no sul do país, que ele governou por quase 20 anos. Ali, as pessoas até hoje chamam Duterte de “nosso prefeito” ao contar seus feitos. Certa vez, quando um turista ignorou as regras de proibição de fumar, dizem os moradores, “nosso prefeito” invadiu um restaurante com um revólver e o obrigou a comer a bituca do cigarro. “Nosso prefeito patrulhou as ruas em sua motocicleta e nos salvou de bandidos”, costumam dizer.

A fama de valentão e homem forte que resolve na unha todos os problemas impulsionaram sua candidatura. Ao chegar à presidência, Duterte fez o que prometeu: “Acabar com as drogas no país custe o que custar”. Ex-promotor, profundo conhecedor das leis, estabeleceu um culto à morte como plano de governo. “Esses filhos da p… estão destruindo nossos filhos. Não mexam com drogas, mesmo que sejam policiais, porque vou matar todos”, foi uma das primeiras frases como presidente.

Não foi da boca para fora. Em poucos meses no cargo, Duterte deu poderes nunca antes vistos às polícias locais e às forças de segurança do país para eliminar traficantes e usuários de drogas. Criou leis e decretos que minaram os mecanismos de controle da violência policial. Estimulou, com palavras e ações, extermínios e prisões extrajudiciais. O resultado: 8 mil oficialmente mortos pelas mãos da polícia em 4 anos, quase dez vezes mais do que em período anterior. Defensores dos direitos humanos e agências independentes falam em até 30 mil mortos.

Popularidade

Ninguém pode dizer que Duterte descumpriu sua promessa. Ele fez exatamente o que dizia com sua guerra à criminalidade, e conseguiu que sua popularidade disparasse. Aí começaram as ameaças maiores à democracia filipina.

“A popularidade alta e os bons resultados eleitorais tiraram qualquer freio que Duterte tivesse”, disse ao Estadão Richard Javad Heydarian, cientista político, professor na Universidade Ateneo de Manila e autor de The Rise of Duterte: A Populist Revolt Against Elite Democracy (A ascensão de Duterte: uma revolta populista contra as elites da democracia). “Ele então começou a usar tudo que tivesse ao seu alcance para manter sua popularidade alta e tirar do caminho os adversários políticos”.

Duterte autorizou a Polícia Nacional das Filipinas a liderar sua “guerra contra as drogas”. O resultado da retórica do presidente é a cultura da impunidade na polícia. Os esforços de décadas para institucionalizar o controle democrático sobre as forças de segurança foram sendo minados. O combate à criminalidade foi usado como desculpa para adotar medidas autoritárias. O crescente poder dos militares é ainda mais legitimado por normativas como a Lei Antiterror, que legaliza a detenção sem acusação por 14 dias e dá ao governo margem para prender críticos acusados de criar um sério risco para a segurança pública.

No auge da pandemia, Duterte registrou um índice de aprovação de 91%. A grande maioria dos filipinos apoia a resposta do governo à pandemia e à criminalidade.

“A satisfação do público dá legitimidade ao projeto autoritário dele”, afirma Nicole Curato, cientista política e professora do Centro para Democracia e Governança Global da Universidade de Canberra. “A oposição do Senado não ganhou um único assento nas eleições de meio de mandato. A Suprema Corte está loteada por nomeados de Duterte. A mídia está enfrentando restrições cada vez maiores. Há cada vez menos obstáculos para ele impor práticas autoritárias.”

Milícia digital

Duterte recorre a outros métodos bem estabelecidos na caixa de ferramentas do homem forte moderno: usa a mídia social para manchar os oponentes, com um exército de trolls para atacar qualquer um que o critique publicamente, um movimento que serve para intimidar aqueles que ainda não falaram. Em 2018, quando Marites Vitug, uma jornalista investigativa filipina, publicou um livro que criticava o abandono de Duterte da reivindicação filipina de um território em disputa com a China, ela foi atacada nas redes sociais, e a principal rede de livrarias do país se recusou a colocar o livro à venda, por medo de retaliação.

Ele tomou outras medidas autocráticas, como usar o Judiciário para amordaçar a imprensa e adversários políticos. No ano passado, Maria Ressa, editora do site de notícias investigativas independentes Rappler, foi indiciada por evasão fiscal. Leila de Lima, deputada do Senado que acusou o presidente por homicídios extrajudiciais, completou o milésimo dia de prisão, tendo sido condenada por “aceitar subornos de traficantes”, uma acusação considerada forjada pela maioria dos analistas.

Intimidação

Duterte está usando as leis para intimidar qualquer um que o desafie. Em 2018, juristas alertaram que ele reinventou a lei quando emitiu uma proclamação na tentativa de “anular” a anistia parlamentar do senador Antonio Trillanes para colocar o legislador atrás das grades. Duterte e o procurador-geral José Calida usaram leis que limitam a propriedade estrangeira para localizar o site investigativo Rappler, da jornalista Maria Ressa, após reportagens críticas sobre seu governo.

Quando a presidente da Suprema Corte, Maria Lourdes Sereno, expressou preocupação de que o presidente possa ter colocado juízes na sua lista de aliados do tráfico, um Duterte indignado pediu ao Congresso que acelerasse o impeachment dela e a declarou sua inimiga. Sereno acabou sendo expulsa por seus companheiros juízes da Suprema Corte, algo inédito.

“Uma nação em guerra justifica práticas autoritárias, pois o devido processo legal é lento e os protestos de liberais progressistas atrapalham a ordem do dia do presidente”, acrescenta o cientista político Richard Heydarian. “A política e a retórica da guerra às drogas têm vastas implicações. Eles criam instituições democráticas frágeis que são sujeitas a abusos”.

Analistas veem na força da personalidade de Duterte a razão de sua popularidade. O sociólogo e autor Walden Bello, importante crítico do presidente, escreveu em uma coluna em fevereiro que “a figura carismática pode escapar impune de qualquer coisa, até mesmo de assassinato”. Bello se referia aos milhares de mortos na guerra às drogas, sobre os quais não há sinais de piedade. “As pessoas estão cientes das mortes, mas, ao mesmo tempo, sentem que Duterte eliminou os criminosos”, disse Bello. “Os bandidos, os meninos da esquina, não estão mais lá. As mulheres podem andar nas ruas com segurança. Não sei se suas vidas estão realmente melhores, mas a percepção é de que estão. Eles são pró-Duterte porque sentem que ele limpou o lugar.”

O desgaste sofrido pela democracia liberal em muitos países também cumpriu seu papel nas Filipinas. Após o fim da ditadura de Ferdinando Marcos, em 1986, e a vitória do movimento político Poder Popular, que uniu o país pelo fim da ditadura, a sucessão de presidentes não conseguiu garantir estabilidade democrática ao país.

“Em termos de corrupção, os governos pós-Poder Popular eram iguais aos do regime de Marcos. A única diferença era a retórica dos direitos humanos e da democracia, que as pessoas cada vez mais percebiam como uma farsa”, afirma Jayson Lamchek, ex-advogado nas Filipinas que agora é pesquisador do Asia-Pacific College of Diplomacy na Austrália. “Não é surpresa que tantos filipinos parecem dispostos a desperdiçar o espírito de 1986, amaldiçoar os direitos humanos e a democracia como inúteis e recorrer a um homem forte para mudar as coisas.”

O grande teste para a democracia filipina ocorrerá em 2022, nas eleições para presidente. Duterte lidera as pesquisas com 28% das intenções de voto, ante 14% do prefeito de Manilla, Isko Moreno, e 13% do senador Ferdinand ‘BongBong’.

“Há uma profunda desilusão com a democracia liberal nas Filipinas, que ele não criou, mas incentiva”, afirma Lamchek. “A dúvida é se os anos de Duterte no poder vão deteriorar um pouco sua credibilidade ou a sensação de que a elite liberal é toda corrupta vai favorecê-lo”.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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