A tese do marco temporal funciona como uma linha de corte ao sugerir que uma terra só pode ser demarcada se ficar comprovado que os indígenas estavam naquele território na data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. Caso seja validado pelo STF, o entendimento poderá comprometer mais de 300 processos que aguardam na fila para demarcação.
Relator da ação, Fachin disse que a Constituição de 1988 foi um ‘marco relevante’ no reconhecimento do direito dos indígenas à terra, mas não o primeiro. O ministro listou uma série de leis presentes em Cartas anteriores que já consagravam a posse das comunidades indígenas.
“O que se dá em 1988 é o reconhecimento de um continuum, uma sequência da proteção já assegurada pelas Cartas Constitucionais quando menos desde 1934, e que agora, num contexto de Estado Democrático de Direito, ganham novas garantias e condições de efetividade para o exercício de seus direitos territoriais. Direitos esses que não tiveram início apenas em 05 de outubro de 1988”, afirmou.
O ministro também chamou atenção para as particularidades da posse indígena – que a Constituição reconhece como ‘permanente’ e com ‘usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos’ preservados por essas comunidades.
“A legitimação da posse obtida por meio violento e injusto não é admitida sequer pela legislação civil. Assim, como poderia a ordem constitucional de 1988 ignorar toda a evolução legislativa anterior e legitimar a obtenção das terras indígenas por meio da violência, desqualificando o direito dessas comunidades, retiradas à força de seus territórios tradicionais, de buscar a reparação do direito que sempre possuíram e foram impedidas de retomar pelo próprio Estado, por ação ou omissão, que as deveria proteger?”, disse.
Em outro trecho do voto, Fachin defendeu que os direitos indígenas são reconhecidos constitucionalmente como direitos fundamentais e garantem a ‘manutenção das condições de existência e vida digna’ das comunidades.
“A posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos índios, das utilizadas para suas atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e das necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”, afirmou.
As sessões iniciais do julgamento da tese ficaram restritas a sustentações orais de 39 representantes de indígenas, agricultores e sindicatos ligados ao agronegócio, que divergiram frontalmente na compreensão da melhor decisão a ser adotada pelo Supremo.
Advogados ligados a agropecuaristas alegaram que o eventual reconhecimento de que o marco temporal é inconstitucional causará insegurança jurídica. Na outra ponta, os defensores dos indígenas argumentam que a fixação de data para reivindicar terras levará centenas de povos originários a perderem territórios que ocupam há séculos e a passarem por um novo processo de violência e marginalização.
“Não se desconsidera a complexidade da situação fundiária brasileira, menos ainda se desconhece a ampla gama de dificuldades dos produtores rurais de boa-fé. No entanto, segurança jurídica não pode significar descumprir as normas constitucionais, em especial aquelas que asseguram direitos fundamentais”, observou Fachin. “Não há segurança jurídica maior do que seguir a Constituição”.
Antes da votação, nas sessões anteriores, o advogado-geral da União, Bruno Bianco Leal, defendeu o marco temporal sob argumento de que a derrubada da tese poderia gerar insegurança jurídica, e o procurador-geral da República, Augusto Aras, disse ser contra a aplicação do entendimento. Ele lembrou que a Constituição registrou a importância do reconhecimento dos indígenas como os primeiros ocupantes das terras e que o status garantido constitucionalmente aos indígenas dispensa até mesmo a necessidade da demarcação – que, em sua avaliação, funciona mais como um instrumento para facilitar a reivindicação das terras em eventuais conflitos de posse.
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