Parlamentares e especialistas em orçamento público avaliaram como “gravíssimo” e comparável a escândalos como os do mensalão e Anões do Orçamento o esquema montado pelo presidente Jair Bolsonaro para aumentar sua base de apoio no Congresso utilizando um orçamento paralelo de R$ 3 bilhões, operado de forma sigilosa até mesmo dos órgãos de controle. Parlamentares da oposição vão pedir que Ministério Público Federal e Tribunal de Contas da União investiguem o caso.
“Essa situação vai além das emendas. Nas emendas, o valor é igual para todos e o pagamento é obrigatório. Mas no ‘tratoraço’ (como o esquema passou a ser chamado por envolver compra de tratores com preços acima da tabela de referência do Executivo), o governo abriu para alguns parlamentares do seu interesse a possibilidade de indicar onde desejariam alocar recursos (além das emendas tradicionais)”, afirmou o economista Gil Castelo Branco, da ONG Contas Abertas.
“O que seria destinado por critérios técnicos passa a obedecer interesses políticos paroquiais. E sem transparência, pois apenas as pastas sabem quem indicou o que para onde. É um mensalão disfarçado de emendas parlamentares.”
A equipe econômica é crítica desse instrumento porque engessa ainda mais as despesas e nem sempre resulta em gastos eficientes, isto é, para atender às prioridades do momento. No caso dos R$ 3 bilhões, os recursos bancaram ações como compra de máquinas e tratores a preços acima da tabela de referência do governo, em um ano já marcado pela pandemia de covid-19 e pela necessidade de dar ajuda financeira aos mais vulneráveis. Por essa razão o escândalo ganhou o nome de “tratoraço”.
Para a professora Élida Graziane Pinto, procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, o “drible” para turbinar os recursos de emendas parlamentares remonta ao escândalo dos Anões do Orçamento. No início dos anos 1990, o esquema culminou na instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito e resultou no afastamento de seis congressistas. Outros quatro renunciaram ao mandato antes da conclusão das investigações.
“Como estamos no reino do voluntarismo fiscal de curto prazo eleitoral, a transparência está, sim, menor. O trato orçamentário no Brasil está menos republicano”, disse Élida.
O caso ficou conhecido como “Anões do Orçamento” devido ao envolvimento de parlamentares de menor notoriedade à época. Segundo documentos históricos da Câmara, as emendas de relator do Orçamento tiveram um papel central no esquema dos anos 90. Elas eram conhecidas poucos instantes antes da votação e eram usadas para turbinar os recursos das emendas.
Sob o governo Jair Bolsonaro, as emendas de relator voltaram com nova roupagem. Um identificador específico foi criado para elas em 2019, para valer no Orçamento de 2020. Um único parlamentar direciona os recursos que, na prática, são indicados por outros congressistas aliados do governo, sem que haja uma “digital” evidente desse direcionamento.
Pelas regras atuais, o Congresso pode direcionar uma área genérica de investimento desse tipo de recurso proveniente das chamadas emendas RP9. Mas a definição dos municípios que irão receber os recursos e quais projetos serão realizados é exclusiva do Executivo. O Congresso até tentou impor o destino dessas emendas, mas Bolsonaro vetou por “contrariar o interesse público” e estimular o “personalismo”. Como revelou o Estadão, porém, ele passou a ignorar o próprio ato após seu casamento com o Centrão e permitiu que um grupo de deputados e senadores aliados impusesse onde milhões de reais deveriam ser aplicados, usurpando uma atribuição do Executivo. O veto nunca foi derrubado.
O flagrante do manejo sem controle de dinheiro público aparece num conjunto de 101 ofícios enviados por deputados e senadores ao Ministério do Desenvolvimento Regional e órgãos vinculados, aos quais a reportagem teve acesso, para indicar como eles preferiam usar os recursos. “Minha cota”, “fui contemplado” e “recursos a mim reservados” eram termos frequentes nos ofícios dos parlamentares.
O líder da oposição na Câmara dos Deputados, Alessandro Molon (PSB-RJ), afirma que o caso revelado pelo Estadão é “gravíssimo” e fere pressupostos de publicidade e transparência do Orçamento. “Estão sendo usados critérios secretos e seguindo trâmites escusos para administrar esses recursos”, critica.
Para ele, o uso das emendas de relator é “discricionário”, diferentemente das emendas impositivas a que cada parlamentar tem direito anualmente dentro do Orçamento. “As emendas impositivas têm o mesmo valor para todos”, pontua. Enquanto cada congressista tem cerca de R$ 8 milhões dentro dessa regra, aliados multiplicam suas indicações por meio das emendas de relator, como o ex-presidente do Senado Davi Alcolumbre (DEM-AP), que direcionou R$ 277 milhões por essa via.
Técnicos do Congresso avaliam de forma reservada que dificilmente o governo vai conseguir se desvencilhar da emenda de relator, que é conhecida no jargão orçamentário como RP9, uma vez que esse dispositivo já está “consagrado” entre os parlamentares como uma forma de ampliar seu controle sobre o Orçamento.
“Tantas regras superpostas e burladas infantilizam o trato das contas públicas no nosso País”, critica a professora Élida Pinto. Ela defende um ajuste fiscal amplo, que fortaleça o planejamento das contas públicas e ao mesmo tempo permita a execução do Orçamento conforme esse plano, blindando as despesas contra “tantas capturas e iniquidades”.
A líder do PSOL na Câmara, Talíria Petrone (RJ), criticou a “compra de apoio” do Centrão pelo governo Jair Bolsonaro em um momento em que o País assiste ao aumento contínuo no número de casos e mortes por covid-19. “Bolsonaro comprando apoio no Congresso, com Orçamento bilionário, enquanto passamos dos 420 mil mortos. Queria ver esse empenho todo para acelerar a vacinação e garantir lockdown com direitos”, escreveu em sua conta no Twitter.
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