O combustível com o qual Erdogan alimentou sua viagem autoritária foi uma denúncia de corrupção, que ele disse ser uma tentativa de golpe. A pesquisadora turca independente Begum Burak reconhece que Erdogan deu passos importantes para democratizar as relações civis-militares e entre Estado e religião. Em dezembro de 2013, porém, um escândalo de corrupção envolvendo mais de 60 membros do governo, um filho de Erdogan e um magnata da construção, mudou tudo.
O caso perseguiu o governo por meses, até ser rejeitado pela Promotoria em maio de 2014. A partir disso, segundo Burak, teve início um processo de enfraquecimento da democracia para que Erdogan se mantivesse no poder. “Em vez de investigar as denúncias de corrupção, o governo encobriu o evento e depois puniu os funcionários e os jornalistas que trataram do assunto”, lembra Burak.
Após a tentativa de golpe militar de 2016, que deixou 265 mortos, Ancara culpou pelo levante o Movimento Hizmet, um antigo aliado e passou a tratá-lo como organização terrorista. Segundo a agência de notícias EFE, até agora, as ondas de expurgos deixaram mais de 125 mil funcionários públicos e 6 mil acadêmicos desempregados, 204 meios de comunicação fechados e cerca de 234,4 mil passaportes cancelados. Um balanço apresentado na terça-feira pelo ministro da Defesa, Hulusi Akar, revela que 23.364 soldados foram expulsos do Exército.
No total, quase 300 mil pessoas foram presas em dezenas de milhares de operações policiais nos últimos cinco anos, enquanto 289 processos judiciais foram abertos. Em 288 deles, cerca de 3 mil pessoas pegaram perpétua e outras 4.189 estão cumprindo outras penas de prisão.
Em seu livro sobre Erdogan The New Sultan: Erdogan and the Crisis of Modern Turkey, Soner Cagaptay escreve que, ao demonizar e reprimir eleitores que não votariam nele, o presidente agravou a polarização entre uma coalizão nacionalista de direita que acredita que a Turquia é o paraíso; e um grupo de esquerdistas, secularistas, liberais e curdos que se veem em um inferno. “Erdogan é o arquétipo dos políticos antielitistas, nacionalistas e conservadores em ascensão ao redor do mundo”, diz Cagaptay.
É inegável o papel transformador de Erdogan na Turquia nas últimas duas décadas. Em seu livro, Cagaptay diz que o presidente é um líder fundamental na história do país, ganhando mais de uma dúzia de eleições nacionais desde 2002, principalmente por apresentar forte crescimento econômico, aumentar o rendimentos e melhorar os serviços sociais.
Em 2013, Erdogan chegou à estação em que deveria desembarcar. Então primeiro-ministro, seu governo comandou uma dura repressão aos protestos contra o estilo autoritário com o qual ele flertava, que começaram em maio daquele ano na Praça Taksim e se alastraram pelo país.
Os protestos foram desencadeados por um projeto arquitetônico em Gezi Park, uma pequena área verde na Praça Taksim, em Istambul. Depois de oito anos e uma batalha cultural, a Praça Taksim tem hoje uma nova identidade.
Mas não foi só a praça que mudou. Segundo um estudo do Instituto Brookings (The rise and fall of liberal democracy in Turkey: Implications for the West), ainda que seja difícil determinar um data exata em que o autoritarismo de Erdogan ficou evidente, a brutal reação aos protestos espontâneos foi um crítico divisor de águas.
De lá para cá, aponta, as promessas iniciais de reforma deram lugar a políticas autoritárias e disfuncionais. As conquistas econômicas e democráticas dos primeiros anos do governo – um modelo admirado por países vizinhos – diminuíram. A perseguição à imprensa, as reformas que minaram a independência do Judiciário e o cerco à oposição aumentaram.
Segundo seus críticos, à medida que foi acumulando poder, ele foi se tornando intolerante e se afastando do Ocidente. O processo de adesão à União Europeia que ganhou fôlego nos primeiros anos paralisou e as relações com vizinhos e aliados tornaram-se mais azedas.
Para o analista britânico Gareth Jenkins, do Instituto Cáucaso-Ásia Central (Istambul), os protestos de Gezi Park chamaram a atenção do mundo para a natureza do governo AKP, mas para ele, os abusos começaram após as eleições de 2007, quando o partido conquistou uma vitória arrasadora. “Ali Erdogan finalmente entendeu que não apenas estava no cargo, mas no poder”, diz Jenkins, que vive em Istambul desde 1989 e acompanhou de perto a ascensão do líder turco. “Erdogan sempre foi um clandestino no trem da democracia.”
No ano seguinte aos protestos de Taksim, após 11 anos como primeiro-ministro, Erdogan se lançou candidato à primeira eleição presidencial direta e articulou para mudar o sistema para presidencialismo. Erdogan foi eleito, e reeleito em 2018, e a posição cerimonial do presidente passou a ter os maiores poderes da república.
O golpe militar frustrado – que na quinta-feira completou cinco anos – foi crucial para consolidar o poder do presidente. O governo rapidamente atribuiu a ação a oficiais e civis associados a Fethullah Gulen, líder espiritual e religioso do movimento transnacional Hizmet. Exilado nos EUA, Gulen rechaçou as acusações.
Em artigo sobre os cinco anos da tentativa de golpe, o chanceler turco, Mevlut Cavusoglu, afirma que membros da organização foram sujeitos a lavagem cerebral. “A Feto, uma organização terrorista secreta que se infiltrou nos órgãos do Estado, tentou destruir a democracia e derrubar o governo democraticamente eleito pela força”, afirmou, se referindo ao Movimento Hizmet.
O movimento foi inicialmente aliado do AKP – os dois compartilhavam a oposição à ideologia Kemalista que, entre outras definições, instituía o secularismo na Turquia. Após um esforço bem-sucedido para fortalecer a agenda islâmica no país, eles romperam. Hoje, segundo Jenkins, o Hizmet serve ao propósito de Erdogan de ter um eterno inimigo.
A perseguição ao movimento chegou a turcos no Brasil, um deles é Mustafa Goktepe, empresário e presidente do Instituto pelo Diálogo Intercultural. Ele e o sócio Ali Sipahi foram alvos de um pedido de extradição em 2019 sob a acusação de financiarem o terrorismo. Sipahi passou 34 dias na prisão. Para evitar o mesmo, Goktepe ficou nos EUA, onde estava em viagem, até o Supremo Tribunal Federal negar o pedido de extradição de Sipahi, em agosto daquele ano.
“Pessoas estavam cansadas das várias imposições que não representavam nossa cultura. Erdogan veio como um salva-vidas, despertando grande ânimo nas pessoas, incluindo eu. Mas as coisas mudaram”, conta Goktepe, que agora não pode visitar a família na Turquia e se entristece por não ter podido se despedir, nem cuidar do enterro do pai no ano passado. “O que temos hoje na Turquia é uma democracia autoritária.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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