Futebol brasileiro enterra a mística da camisa 10 construída por Pelé

O Palmeiras chegou à semifinal da Copa Libertadores após vitória tranquila sobre o São Paulo, por 3 a 0, no Allianz Parque. A história poderia ser diferente caso Pablo aproveitasse um lance capital e raro dentro da área, dizem alguns são-paulinos. Quando o placar marcava 1 a 0, Emiliano Rigoni deu passe por entre os zagueiros palmeirenses, deixando o atacante na cara do gol.

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“Assustado”, ele mandou a bola para o alto. O responsável por balançar as redes não esperava o passe de excelência do argentino. Lances assim, dos famosos cabeças pensantes, são cada vez mais raros entre os brasileiros. Além da falta desse tipo de jogador, uma conclusão pode ser percebida no futebol nacional, e também mundial: a mística da camisa 10 está desaparecendo. O Palmeiras não tinha um 10 em campo nesse jogo. O 10 do São Paulo era Daniel Alves, que atuou na lateral.

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Quem deu peso para a camisa 10 foi Pelé, quando passou a usá-la no Santos e depois na seleção brasileira. Antes dele, a numeração dos uniformes não era assim. A partir de Pelé, o 10 passou a ser encarado como o craque do time, os mais bem pagos e aquele com o qual os marcadores deveriam se preocupar. A partir daí, uma legião de astros bons de bola começaram a usar a 10. Dois argentinos fizeram história com ela: Maradona e Messi. Zico vestia a 10. Rivellino também, assim como Tostão e Jairzinho e Ademir da Guia. Mais recentemente, ela foi de Raí e Ronaldinho Gaúcho. Messi a usou no Barcelona por anos. Alguns excepcionais preferiram não se valer dela, como Cruyff e Cristiano Ronaldo – esse último por causa também de campanhas de marketing, a do CR7.

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Não se faz mais questão de ter um 10 no time. Luiz Adriano usa o número no Palmeiras, mas ele é atacante. Deveria ser 9. A desmistificação da 10 tem a ver também com a falta de jogadores como Pelé e Zico, por exemplo, nas equipes atuais. O futebol brasileiro parou de fabricar esses chamados “maestros” dos times. Nos atuais esquemas táticos, correria em campo e preferência dos treinadores, outras posições são mais valorizadas do que o dono da 10. Não há mais o toque refinado, o drible surpreendente e o lançamento requintado de longa distância, tarefas que ‘somente’ os 10 sabiam fazer. Atualmente, os passes são curtos, muitos para trás, e os volantes tomaram essa função na saída de bola. Tanto é assim que o técnico Tite tem em Casemiro seu grande jogador do meio de campo. Para ele, Neymar é atacante. Jamais será um ponta-de-lança, como os meias eram chamados.

Poucos times têm armadores que não decepcionam e os que mostram categoria não dão a mínima para a 10. Raphael Veiga e Gustavo Scarpa são dois bons articulares de jogadas. Nenhum deles veste a camisa 10, tampouco isso foi cogitado pela comissão técnica, estafe do atleta ou mesmo torcida. Em relação a Scarpa, nem se sabe ao certo se ele é titular do time ideal de Abel Ferreira. Longe, porém, de um Ademir da Guia. Mesmo o Flamengo, o time mais badalado do Brasil, o jogador que mais se parece com um 10 é Arrascaeta, que usa a 14. E Everton Ribeiro, que veste a 7. O dono da camisa que já foi de Zico é de Diego, que era um 10 no passado, mas que se tornou volante e está feliz da vida. A 10 não tem qualquer peso no seu corpo.

Também era dado ao camisa 10 a missão de cobrar as faltas. Talento do time, era inadmissível que um jogador que vestisse o número místico no futebol não soubesse cobrar com perfeição os tiros livres. Rivaldo sabia fazer isso com categoria. Ronaldinho Gaúcho também. Foi ele, aliás, que inventou a cobrança por baixo da barreira quando todos pulam. Obrigou, com isso, que os times colocassem um jogador deitado no chão, em posição nada confortável para um atleta, atrás da ‘muralha’, que seguiu saltando com segurança.

Prova também que o futebol brasileiro não dá mais bola para quem vai usar a camisa 10 é a falta de meias mais criativos nas equipes. Nas bases, poucos sobem com essa condição, o que faz com que os clubes importem alguns atletas com essas características e capazes de resgatar a magia do uniforme dentro de campo. Benítez, do São Paulo, é um desses estrangeiros com alguma pegada nesse sentido. O Atlético-MG tem o bom Nacho Fernández. E o Santos poderia ter em Carlos Sánchez esse atleta. Por tempos, os jogadores também sentiram o uso da camisa. Eram os mais cobrados pela torcida.

Essa nova geração de jogadores prefere, no entanto, usar camisas com números que significam alguma coisa em suas histórias pessoais. Messi, em sua nova fase no Paris Saint-Germain, vai vestir a 30, o primeiro número que usou quando subiu da base do Barcelona. Como está em fase de ‘recomeço’ em Paris aos 34 anos, ajudou por bem se valer dessa história. Ele recusou a camisa 10, oferecida por Neymar, que também entende não precisar do 10 nas costas para ser importante no futebol moderno.

Para os autênticos 10 do passado, esse pouco interesse em usar o número tem a ver com a falta de categoria dos armadores das equipes, mas também de um período que ficou para trás, que não diz mais nada para os clubes na atualidade e que os defensores da memória do futebol também não fazem questão de manter. O ex-ponta esquerda Edu é categórico sobre o tema: “Não vão ter mais camisas 10. Hoje são todos corredores em campo”, diz. “Não tem emoção, falta o drible, o cara que cria. Isso dificulta muito para o atacante, por exemplo. Não tem aquele jogador que te deixa na cara do gol, um Pita, Rivellino, Zico, Ademir da Guia, Dirceu Lopes, Tostão, Ailton Lira, Zenon, Djalminha…”, lamenta. “Eram tantos jogadores que tratavam a bola de ‘meu bem’… O camisa 10 acabou. Infelizmente não temos mais.” Talvez a única posição que ainda guarda suas características seja a do goleiro, mesmo assim ele pode usar os pés e cada vez mais é cobrado por isso.

De modo geral, os atletas do passado, que atuaram com 10 históricos, relacionam a importância dada hoje à camisa 10 ao desaparecimento de jogadores que tinham as características de Pelé, por exemplo. “Ninguém veste mais a 10 porque não temos mais ‘camisas 10’. Infelizmente. Falta habilidade. Ela desapareceu do futebol”, admite o meia Leivinha que formou uma das melhores duplas de todos os tempos com Ademir da Guia na época da Academia de Futebol do Palmeiras.

A camisa 10 também era a mais vendida nos clubes. Há anos não é mais. Messi talvez tenha sido esse último craque a manter sua mística. Mbappé, o queridinho da França campeã do mundo em 2018, usa a 7. A mesma que era de Dudu e agora pertence a Rony no Palmeiras. Quando chegou ao Corinthians, Giuliano teve a chance de usar o número nas costas. Não quis. “Eu não tenho problema nenhum com número. Já usei a camisa 7, a 8, a 10, a 88 e a 11. Me deram a opção, tinha a 10 disponível no Corinthians, mas eu escolhi a 11”, disse o meia, que utilizou a numeração pelo Internacional na Copa Libertadores de 2010.

Ela já foi de Jadson, Danilo, Rodriguinho e até Renato Augusto. Teve ainda Rivellino e Neto como seus donos. Hoje, está no armário. No Botafogo, que briga na Série B, a 10 também não tem dono. Ninguém no elenco se interessou em usá-la. Ela já foi de Jairzinho. No Fluminense, ela é de Ganso, reserva atualmente.

Para o técnico Candinho, a ruína dessa mística do camisa 10 tem a ver também com a organização (ou falta dela) do futebol brasileiro. Ele vê muito desse sumiço por causa dos companheiros de profissão despreparados e pela vontade dos clubes de fazer dinheiro abrindo mão de seus melhores jogadores muito facilmente.

“O futebol no Brasil é muito de negócio. Aceleram a revelação dos jovens para vender”, observa o técnico que fez sucesso na Portuguesa por dar liberdade para os jogadores serem ousados. “Agora é só toque de bola. Aqui não tentam mais os dribles, querem criar as jogadas com os zagueiros, grande maioria ruim e que acaba entregando a bola.” Ele ainda responsabiliza os treinadores. “São formados em cursinho na CBF, não trabalham por suas essências, como era um Telê Santana, um Cilinho, (Mário) Travaglini, eu, o (Rubens) Minelli… A maioria não sabe o que fazer, é tudo formadinho.” Para Candinho, o europeu ainda mantém a tradição do camisa 10.

Com o futebol cada vez mais se destacando pela força física, os jovens se importam mais em receber a bola, dominar e servir um companheiro. “A visão diferenciada está em decadência. Neymar, no Paris Saint-Germain, é o único brasileiro que honra a camisa 10. Mas é atacante de origem. O fato é que deram muitas funções ao camisa 10”, afirma Paulo Rink. Então, ele poderia ser qualquer um. Como é atualmente.

Confira abaixo os jogadores das camisas 10 dos 12 grandes do Brasil:

Atlético-MG – Vargas

Botafogo – vaga

Corinthians – vaga

Cruzeiro – Rafael Sóbis

Flamengo – Diego Ribas

Fluminense – Paulo Henrique Ganso

Grêmio – Douglas Costa

Internacional – Taison

Palmeiras – Luiz Adriano

Santos – Gabriel Pirani

São Paulo – Daniel Alves

Vasco – Morato

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