A modernidade trouxe consigo o melhor e o pior que pode existir, acostumamo-nos a idolatrar as maravilhas por ela proporcionada, ajoelhamo-nos ante a tantas benesses que ela nos empurrou goela abaixo, sorrisos fartos não faltaram da nossa parte quando mais de um milhão de vezes ela nos prometeu que o futuro seria brilhante, que o passado não se repetiria mais, que as tragédias de antanho seriam todas reparadas, sim a modernidade desde seus primórdios possui um discurso encantador, melífluo, de acordo com as circunstâncias; o que não é do seu agrado ela jogou para escanteio, buscou de todas as formas eliminar as imperfeições, mas como bem sabemos uma bola jogada para fora das quatro linhas, ela sempre volta ao campo, não admite que enquanto o jogo esteja sendo disputado ela fique de fora; por bem ou por mal a vida nos ensina muito, queiramos ou não.
A modernidade não suporta que lhe apontem o dedo, para muitas situações que ela mesma criou com consequências trágicas, ela não busca uma solução que satisfaça a todos, quando muito busca soluções imediatistas e paliativas e mais: ela nunca ataca a doença, apenas trata dos sintomas deixando assim que os conflitos e vulnerabilidades se prolonguem no tempo e no espaço. O ser criado pela modernidade acredita em muitas coisas desde que essas estejam sempre a seu favor lhes dando suporte a todo momento, o ser da modernidade não tem medo algum de subjugar o seu semelhante por todo tipo de artefatos, mas teme profundamente que o subjugado se levante e diga o que pensa, o que sente; odiar o presente é marca registrada do ser moderno, ele não admite os atuais entraves que não lhe possibilitam uma escala ainda maior rumo a mundos desconhecidos.
Uma das grandes incongruências modernas é a fome que campeia solta no planeta afora, no Brasil especificamente trinta e três milhões de seres humanos sabem bem, pois nenhuma universidade lhes ensinou isso e até de modo autodidata, nos dizem o que é passar fome em tempos onde se propagam as melhores e maiores notícias da produção de alimento aqui e também fora daqui. A fome não nasce do nada, ela não surge num passe de mágica como alguns tolos imaginam, a fome não advém do fato de as pessoas não quererem trabalhar; a fome em outras palavras é uma criação puramente humana, uma trágica invenção que inconscientemente muitas vezes tem por objetivo deixar as pessoas na corda bamba da existência, quando levamos a sério a história, é incalculável o número de pessoas que morreram por falta de comida, uma guerra quieta e muito bem camuflada.
O ser humano cópia da modernidade muito pouco se aplicou em realizar bem o seu trabalho, praticamente não se importou com nada além de ver seus planos levados a ferro e fogo, a terra para esse ser nunca foi vista como algo que faz parte da sua realidade, nunca lhe passou pela cabeça que um dia ela pudesse se rebelar, diferente dos nossos ancestrais que tem uma reverência profunda para com o solo, o homem dotado de poderosas máquinas, revirou a terra até quase a exaustão, tirou dela muitas coisas boas sem dúvida, poucos armazenaram demais, milhões nem sequer viram ou verão a cor de tais produtos guardados; a terra que tanto nos deu até hoje nunca foi recompensada a contento pelo ser humano, são poucos os que lhe dirigem um muito obrigado por tudo, são milhões aqueles que a envenenam todos os dias, poluem e despejam nela todo e qualquer tipo de imundície.
Nosso querido Brasil recebeu aturdido a triste marca de ter em seu meio trinta e três milhões de pessoas que comem mal ou muito mal, que passam fome, que não possuem sequer o básico para se sustentarem, o preço dos alimentos de tempos para cá explodiram a níveis absurdos tornando ainda mais difícil para as pessoas adquirirem alimentos com qualidade, o resultado é inegável, aos que tem consciência é fácil observar pois além da falta de comida, falta dinheiro para que esses sejam adquiridos, falta boa vontade de alguns para proporcionarem aos mais vulneráveis valores mais módicos, falta empatia para com o meio ao nosso redor, resumindo: falta-nos uma profunda vivência com a terra inteira, com os alimentos que ela nos proporciona em abundância inigualável; de um modo ou de outros com todas as nossas mesquinharias somos também cúmplices dessa tragédia horrenda.
Bioeticamente, a fome que assola o mundo e também o Brasil, é um problema gravíssimo que diz respeito a cada um de nós em particular e coletivamente, ela pode aumentar como pode ser superada rapidamente, há milhões de toneladas de alimentos guardados mundo afora, mas bem sabemos que os alimentos são uma arma poderosa nas mãos de quem os detém, nas guerras diárias travadas por assassinos de ambos os lados (seja a Rússia, a OTAN ou qualquer outro país) que estamos cansados de ver e ouvir deixar as populações morrerem de fome é talvez o menor dos problemas. A fome no mundo global é um escândalo, uma afronta à Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro 1948, que em seu artigo 25 reza que “todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação”; portanto ter direito à alimentação é um direito humano universal, inalienável, quer se goste ou não desse fato.
Rosel Antonio Beraldo, mora em Verê-PR, é Mestre em Bioética, Especialista em Filosofia pela PUC-PR; Anor Sganzerla, de Curitiba-PR, é Doutor e Mestre em Filosofia, é professor titular de Bioética na PUCPR.