“Organizar um evento desse porte, com 50 pessoas convidadas de países diferentes, demanda muita paciência e carinho”, afirma ao Estadão a escritora brasileira Ana Rüsche, uma das mentes por trás do evento. “Estamos em fusos horários distintos e ninguém na organização tem inglês como língua materna, então, estamos usando um idioma dominante de empréstimo para nos encontrarmos. Mas é uma forma de fazer com que mais narrativas sejam divulgadas fora dos grandes nós editoriais.”
Ao longo de três dias e em fusos horários variados até domingo, a FutureCon terá painéis de discussão voltados à produção de ficção científica em locais específicos, como o continente africano, o mundo árabe, China e América Latina. Há também conversas a respeito de aspectos que circundam os livros, como o mercado editorial, a tradução e as revistas literárias. Outras mesas giram em torno de temas não atrelados à geografia, como a relação da literatura com as mudanças climáticas, o pós-humanismo, as culturas indígenas e até mesmo a comida.
O roteirista peruano César Santivañez, que participa de três painéis, acredita que o evento possa contribuir com soluções interessantes, porque “a cultura do individualismo torna os problemas globais difíceis de compreender a menos que eles afetem nossa vida cotidiana”. Por isso, para ele, “a ficção científica pode oferecer uma abordagem humana aos grandes problemas de nossos tempos”. Ele, que também fará parte de uma mesa sobre cultura de povos indígenas na ficção futurista, indaga: “E se o segredo para um mundo ecologicamente sustentável esteja nas profundezas da Amazônia ou em uma lenda asteca?”.
Para a escritora mexicana Gabriela Damián Miravete, a crise climática que vivemos é tema para o sci-fi porque, na verdade, o gênero “sempre foi mais sobre o presente do que o futuro, suas narrativas apenas usam a extrapolação para explorar possibilidades”. Ela acredita que isso seja parte de um movimento literário global: “Agora, muitos escritores estão imaginando mais do que formas de alertar que a crise está vindo, eles estão imaginando seu impacto na vida cotidiana, na nossa paisagem emocional, nossa psique, para nos ajudar a lidar com o luto, mas também a bolar alternativas para resistir à catástrofe e até revertê-la”. O surgimento de subgêneros como solarpunk e hopepunk, que imaginam cenários climáticos otimistas, é para ela exemplo dessa capacidade de a literatura incentivar a mudança.
A escritora espanhola Cristina Jurado, vencedora de três prêmios Ignotus e editora da revista SuperSonic, participará de duas mesas na FutureCon e afirma que a suspensão de descrença necessária para qualquer narrativa futurista deve ser sempre levada em consideração por tradutores, algo que será debatido mais profundamente em uma mesa sobre o tema. “Para surpreender o leitor sem enganá-lo, o tradutor tem de ser familiarizado com os aspectos específicos do gênero”, diz Jurado.
O escritor brasileiro Fábio Fernandes, finalista do Jabuti em 2020, mediará a conversa sobre tradução e comenta as peculiaridades de verter obras de sci-fi para outro idioma: “Acho que a diferença principal está na ocorrência de neologismos, ou seja, palavras novas do léxico inventadas pelo autor. Isso apresenta uma dificuldade em dois sentidos: o primeiro, mais óbvio, é deslindar o significado dado pelo autor e propor um significante que permita ao leitor decifrar rapidamente (ou nem tanto, dependendo do caso) a intenção do autor. O segundo, infelizmente, está na resistência que muitas editoras (nem todas, claro), particularmente nos últimos anos, não sei por que razão, à criação de palavras”.
Já o escritor e editor italiano Francesco Verso, que comanda o selo editorial Future Fiction, e venceu várias vezes honrarias relevantes da literatura italiana, como os prêmios Italia, Cassiopea e Odissea, vai comandar um curioso debate sobre ficção e comida. Para ele, a literatura ainda precisa olhar mais para “a maneira como humanos e não humanos se sustentam ou como produzem o alimento de que precisam para sobreviver”. Ele afirma que vivemos numa época em que tudo é aprimorado, incluindo a comida, “com substâncias nano enriquecidas, carne vegana impressa em 3D e proteínas e vitaminas sintéticas. Podemos escanear comida, identificar comida, rastrear comida do destino ao ponto de origem. Cada vez mais nossa nutrição está nas mãos de assistentes virtuais e inteligências artificiais nos dizendo qual é a nossa dieta ideal customizada de acordo com nosso corpo”.
“Eu sempre acreditei que a ficção científica e futurista não era só sobre leis da astrofísica, motores mais rápidos ou alienígenas ameaçadores, mas também sobre novas políticas, música inovadora e formas criativas de nos alimentarmos”, acrescenta.
A FutureCon surgiu em um contexto de pandemia, como forma de fazer dialogar diferentes localidades. Eventos virtuais permitiram a interação de autores de várias partes do mundo, algo que não seria viável presencialmente sem um grande orçamento. Na primeira edição da FutureCon, em 2020, estiveram presentes nomes premiados como a escritora e editora norte-americana Ann Vandermeer, o autor norte-americano James Patrick Kelly, a autora indiana-americana S. B. Divya e o escritor brasileiro Duda Falcão.
“É possível que haja alguma edição híbrida da FutureCon num futuro próximo, isto é, com parte presencial em algum lugar do planeta”, comenta Rüsche, finalista do Jabuti e vencedora do prêmio Odisseia de Literatura Fantástica m 2020. “Da organização atual, a única pessoa que conheço pessoalmente é o Fábio Fernandes. As demais, apesar de já terem virado amizade, nunca encontrei. Será lindo quando isso acontecer.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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