Paulo Argollo
Foi a pandemia que despertou em mim um interesse mais profundo em história. Muito tempo em casa, procurando distrações, acabei caindo por acaso em um vídeo do Eduardo Bueno, também conhecido por Peninha. Jornalista gaúcho, o Peninha ficou famoso por escrever livros contando a história do Brasil de maneira mais despojada, numa linguagem saborosa, e também trazendo muitos fatos desconhecidos da maioria das pessoas, coisas que não são contadas nos livros de história do colégio. Bom, passei a acompanhar os vídeos do canal no Youtube do Peninha e procurar não só os livros que ele escreveu, mas também os indicados como bibliografia ao final de seus vídeos. E realmente me envolvi demais com isso, fui querendo saber mais e, no fim, acabei de me matricular numa graduação EAD de história, só pra ter mais acesso a este tipo de conhecimento.
Mas não é sobre nada disso que eu quero falar hoje. Puxei esse assunto porque assim como o próprio Peninha sempre diz, e eu também já escrevi em vários textos meus por aqui, a história é uma fabulação, ela é contada sob um ponto de vista determinado e muitas vezes uma versão fantasiosa ou distorcida da realidade acaba virando a versão oficial dos fatos. A história mesmo, a de verdade, é contada através de documentos, relatos verificados e etc. Por isso, hoje em dia, com muito mais acesso à informação, podemos reconstruir muitos fatos históricos e entender como eles realmente aconteceram. E a verdade é que pudemos ter uma prova inquestionável disso na semana passada, no dia 25 de novembro. O diretor de cinema Peter Jackson teve acesso a um acervo revelador de filmagens e áudios que foram compilados e editados para nos mostrar como realmente foram os últimos anos dos Beatles antes da separação definitiva da banda.
“Ain, que exagero! Colocar um filme de uma banda de rock como se fosse um documento histórico!”. Não, não é exagero. Primeiro porque os Beatles foram determinantes para toda uma revolução cultural, comportamental e musical no mundo todo. Entender a história dos Beatles é entender a evolução da cultura popular e as mudanças de comportamento da juventude. O filme Get Back, lançado semana passada na plataforma de streaming Disney +, é fundamental para recontar os últimos passos da banda antes de seu final. Na prática, ele não muda a maneira como os Beatles impactaram o mundo. Mas consegue trazer à tona várias controvérsias e mostrar como as coisas aconteceram. Além disso, nos dá o privilégio de ver aqueles jovens rapazes conversando, trabalhando, se divertindo e criticando uns aos outros.
Em resumo, o que aconteceu foi o seguinte: no final de 1968 ficou decidido que os Beatles, através de sua própria produtora, a Apple Corps, produziria um especial para a televisão filmando a banda em estúdio ensaiando e depois fazendo um show, coisa que eles não faziam desde 1966, quando abandonaram por escolha própria os palcos. A ideia era muito vaga. Não se sabia como isso seria apresentado, onde o tal show aconteceria, qual seria o repertório, se seriam músicas inéditas ou antigas, deles próprios ou de outros artistas. Mesmo assim, no dia 2 de janeiro de 1969, eles se reuniram num estúdio em Londres para começar a trabalhar. Foram três semanas da banda compondo novas canções, ensaiando e etc, tendo câmeras e microfones captando tudo. Um verdadeiro reality show. Foram gravadas 56 horas de vídeo e 120 de áudio. Mas, em seguida, a banda começou a ter vários problemas e desentendimentos, e esse material todo foi arquivado.
No final do ano de 1969, enquanto o disco Abbey Road era lançado, os Beatles já haviam decidido pelo fim da banda, mas nada foi dito publicamente porque ainda haviam muitos negócios e contratos a serem definidos. Em janeiro de 1970, o diretor Michael Lindsay Rogg, que foi o diretor daquelas filmagens de janeiro de 1969 recebeu sinal verde para editar o material e fazer um filme, que seria lançado em maio. O disco continha as músicas compostas e gravadas durante aquelas sessões. Lindsay Hogg sabia que a banda tinha acabado e que isso viria à tona de qualquer maneira. E ele fez o que se esperava, provavelmente até com o aval da Apple Corps. Montou um filme soturno, evidenciando os momentos em que os músicos discutiam e pareciam cansados. Assim, em março Paul McCartney declara à imprensa que os Beatles acabaram. Em maio são lançados o disco e o filme, ambos chamados Let it Be.
Desde o lançamento do Let it Be, em 1970, até a semana passada, todo mundo tinha aquela imagem dos últimos dias dos Beatles em estúdio. Uma banda em que não havia mais amizade nem companheirismo, só um cansaço amargo. Até mesmo os próprios Beatles acabaram ficando com essa impressão. Paul McCartney chegou a declarar isso recentemente. Além do mais, se tinha a ideia de que Yoko Ono foi pivô da separação, atrapalhando a banda em estúdio e distraindo John Lennon. Esse era o retrato do fim dos Beatles.
Até que alguns anos atrás, o diretor de cinema Peter Jackson foi convidado a ir até a Apple Corps, pois havia interesse de se produzir uma atração que iria reunir os Beatles através de hologramas e coisas do tipo. Como a empresa de Jackson é mais tarimbada no mundo nesse tipo de tecnologia, lá foi ele conversar com os empresários. Ao fim da reunião, Peter Jackson, que sempre foi grande fã da banda, perguntou: “E o que foi feito de todo aquele material do lendário projeto Get Back? Quem fim levou aquilo tudo?”. Projeto Get Back é como ficou conhecido o tal projeto que viraria programa de TV show e etc. Enfim, os caras disseram: “Ah, estão guardados”, e levaram Jackson até uma sala com prateleiras abarrotadas de rolos de filmes e fitas. Então Jackson disse: “Olha, se vocês algum dia quiserem mexer nisso, me avisem. Eu posso ajudar”. Dias depois, Peter Jackson recebe um telefonema de um dos empresários da Apple dizendo: “Então, se você quiser dar uma olhada naquele material e produzir um documentário ou algo assim, fique à vontade”. E o sonho de Peter Jackson e de todos os fãs dos Beatles ao redor mundo começou a se tornar realidade. Era para o filme ter sido lançado no ano passado, quando o disco Let it Be completou 50 anos , mas aí veio a pandemia…
E essa realidade realmente superou muito as expectativas. Primeiro porque Peter Jackson fez um cuidadoso e muito moderno tratamento nas imagens e no som. A qualidade do material apresentado é inacreditável. Parece que foi gravado recentemente em HD! Além disso, como um verdadeiro admirador dos Beatles, tratou com muito respeito o material que tinha em mãos e executou uma edição primorosa, montando o filme em ordem cronológica, sem poupar detalhes e mantendo uma linha narrativa super eficiente, encantando o espectador com os Beatles em estúdio criando suas canções, mas também mantendo a curiosidade de saber onde aquilo tudo vai dar, dado o caos e desorganização das ideias e conceitos do projeto. Só por esses aspectos já é um filme ótimo e super recomendável. Mas ainda tem mais.
Peter Jackson nos coloca como um membro da equipe de filmagem, como se estivéssemos ali dentro do estúdio. É quando você percebe que toda aquela animosidade e amargor do filme Let it Be, que reinava na nossa memória como a verdade sobre os Beatles, não era verdade. O que vemos diante de nossos olhos é um grupo de quatro bons amigos que fazem música, se respeitam, querem fazer as coisas da melhor maneira possível e querem, acima de tudo, se divertir. É claro que existem conflitos e discussões. Mas dentro do conceito amplo das conversas, nota-se que não é nada pessoal, é simplesmente cada um defendendo suas ideias e necessidades para determinado trabalho ou canção. Na maior parte do tempo eles se dão super bem, conversam, fazem piada um com o outro… e escrevem canções geniais com uma facilidade incrível, mas que exigem um esforço enorme para serem devidamente lapidadas. É muito interessante ver como eles trabalharam em cima de Don’t Let me Down e Get Back, por exemplo, trocando partes das letras, adicionando ou retirando backing vocais, aprimorando o arranjo, por fim até trazendo o reforço do tecladista Billy Preston, que ajudou muito a arredondar tais arestas. E a Yoko Ono? Ela está lá, sempre ao lado do John, sim. Mas quase nunca interfere, em alguns momentos é até ignorada pelo John.
É claro que é um filme longo. São mais de 7 horas de duração, divididas em três capítulos. É claro que ele vai agradar mesmo quem é fã da banda. Mas mesmo quem não liga muito para os Beatles, vale a pena ver o processo criativo dos caras, a maneira como eles pensavam e como eram realmente caras esforçados e trabalhadores. Vamos lembrar que tais gravações começaram no dia 2 de janeiro de 1969. Provavelmente eles foram pro estúdio ainda de ressaca da festa de Ano Novo. E trabalharam por três semanas seguidas, diariamente. Sem falar que é das sessões de gravação esse material todo que resultou o legendário show dos Beatles no telhado do prédio da Apple, no centro de Londres. Um acontecimento que virou ícone e já foi muito referenciado e imitado.
Pra finalizar, preciso dizer que, de minha parte, Get Back me emocionou demais. Fiquei com a alma lavada de saber que o fim da banda que eu mais amo não foi tão traumática assim e que eles eram realmente bons amigos, apesar de tudo. Fiquei muito emocionado de ver diante dos meus olhos algumas das canções que eu mais amo serem concebidas, ver como a música, quando flui diretamente, afeta positivamente as pessoas, as faz sorrir enquanto tocam seus instrumentos. É um filme que eu ainda vou rever muitas vezes e sempre vou me sentir inspirado por ele. Eu que nunca gostei de Senhor dos Anéis e etc, não poderia imaginar que um dia sentiria pelo senhor Peter Jackson tamanha gratidão.
HOJE EU RECOMENDO
Filme: Get Back
Diretor: Peter Jackson
Ano de lançamento: 2021