Como uma espécie de crônica, escrita por Newton Moreno, a história traz a passagem de um escritor por um aeroporto. Enquanto busca uma boa história, o personagem descreve detalhes do ambiente que ganharam nova dimensão no mundo de hoje, sem embarque e check-in, conta o dramaturgo. “Nessa situação de claustro, viajar é um exercício de muita imaginação. Estamos sem estrada.”
O relato do viajante interpretado por Paulo André traz versos em áudio, imagens dos passageiros no voo e um pouco de humor com o uso de GIFs, conta o ator. “Consigo realizar enquetes e acompanhar a participação do público”. Também estão no elenco Eduardo Moreira, Inês Peixoto, Simone Ordones, Lara Madonna Volguer Estrela, Lydia Del Picchia, Luiz Rocha e Shima.
A descoberta de tantos recursos narrativos no aplicativo veio após muita tentativa e erro, descreve a diretora Yara de Novaes. “Tentamos os stories do Instagram e percebemos que o texto tinha uma sinceridade que não funcionava nos vídeos curtos”, justifica.
O WhatsApp também foi cogitado, principalmente após André e Yara assistirem a Tudo que Coube numa VHS, do Grupo Magiluth. Apresentado como um “experimento sensorial de confinamento”, a montagem do grupo pernambucano unia o aplicativo de mensagem mais popular do Brasil com interações no Instagram e Spotify. “O Telegram se mostrou mais completo”, conta a diretora. “Por exemplo, é possível trabalhar com texto, áudio, vídeo e trilha sonora, tudo junto.”
De fato, a música criada por Barulhista encontra um lugar especial no aplicativo, uma vez que o Telegram permite rolagem da tela sem interromper a execução do áudio. O que não acontece com o WhatsApp. “O trabalho ganha camadas de som. Deixa de ser apenas voz ou som ambiente para criar situações de drama e humor”, explica André.
Além da parte estética, as ferramentas de automação do Telegram ajudam nos bastidores. O envio de mensagens em tempo real e o envio programado são as novas ferramentas do ator. A voz de André tem um papel de guia na experiência, mas quem dá o ritmo da obra é o fluxo de texto, foto e vídeo, surgindo a todo instante na tela. Até os erros são bem-vindos.
“De vez em quando, digito algo incorreto ou fora de ordem só pra lembrar o público que não sou um robô”, brinca o ator. Para a diretora, um ambiente tão livre quanto o palco. “É um lugar interessante para a performance porque o Paulo André tem a chance de fazer o que quiser, agir nos erros, nas edições e no modo de interagir”, comenta Yara. E ao fim de cada transmissão, todas as mensagens enviadas são apagadas. “A pessoa só vai ter a lembrança”, acrescenta André. “Como acontece no teatro.”
A interação com o público também recebeu tratamento especial. O projeto oferece o modo maratona, ao vivo, com duração de 1h30, e a jornada diluída, ao longo de oito horas. “Na segunda opção, a trama é apresentada com mensagens em ritmo descontinuado, para o público acompanhar quando quiser, até o fim da viagem,” explica Yara. “Durante os ensaios, algumas pessoas preferiram a maratona, e outras contam que ficaram na expectativa pela chegada de cada mensagem.”
Público digital
O projeto é mais um passo na frente criativa e digital que o Galpão vem desenvolvendo desde os primeiros meses da pandemia. No filme documental Éramos em Bando, lançado em 2020, o grupo aparecia lado a lado nas telinhas de videoconferência para compartilhar os primeiros impactos – e os absurdos – da quarentena na vida da companhia e de seus artistas.
Naquele momento, foi o caminho mais rápido e simples para acessar o público. Entre as dores relatadas no documentário, o grupo vivia o cancelamento da estreia do espetáculo Quer Ver Escuta, no Festival de Curitiba, e muitas dúvidas sobre o futuro. Mais tarde foi a vez de Histórias do Confinamento. Uma proposta que colheu a experiência do público durante a pandemia. Os relatos mais interessantes foram escolhidos e narrados pelo elenco do Galpão.
Ao reconhecer tantas transformações no modo de trabalhar, o autor de Como os Ciganos Fazem as Malas reflete que o pensamento nômade da obra pode alimentar o próprio ofício. “O teatro precisa estar conectado e traduzir esse mundo confuso”, acredita Moreno. “Estão surgindo coisas legais, mas não vão roubar o encontro que virá no futuro.” André concorda que a parceria do teatro com o digital não vai se desfazer tão cedo, mesmo depois da pandemia. “Temos preocupação de que o trabalho no digital não seja um lugar provisório ou precário. Estamos impedidos de fazer nossa arte viva, presencial, mas se mantém o desejo de nos dirigirmos ao outro.”
O projeto Dramaturgias – Cinco Passagens Para Agora se estende até dezembro, com participação do diretor Marcio Abreu e dos autores Pedro Brício e Silva Gomez.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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